terça-feira, 23 de outubro de 2012

A CNBB e os presidentes no regime militar




domivoDom José Ivo Lorscheiter deixou um depoimento emocionado sobre o relacionamento da CNBB com os presidentes militares, e também sobre a visita do papa João Paulo II ao Brasil, em 1980.


Dom Ivo foi bispo auxiliar de Porto Alegre (1966 – 1974) e o sexto bispo diocesano de Santa Maria/RS (1974 – 2004). Foi Secretário Geral (1971-1974 e 1975-1978) e Presidente da CNBB (1979-1982 e 1983-1986); delegado da CNBB junto ao CELAM (1987-1990); membro da Comissão Episcopal de Pastoral da CNBB e, como tal, responsável por Ecumenismo e Diálogo Inter-religioso e Comunicação Social (1991-1994 e 1995-1998). Junto ao Vaticano, foi membro da Congregação para o Clero, por dois mandatos. Faleceu em 2007, aos 79 anos.

Apresentamos uma parte do depoimento de dom Ivo no seminário sobre a presença pública da Igreja no Brasil, por ocasião dos 50 anos da CNBB, e publicado posteriormente pelo Instituto Nacional de Pastoral e por Edições Paulinas.

“Eu gostaria de fazer uma reflexão sobre dois momentos do meu período na CNBB. Eu não decorei muito as minhas datas, mas queria primeiro falar um pouco sobre o período na ditadura militar. E, depois, queria falar do relacionamento da Presidência da CNBB com a Santa Sé, e até especificamente com o papa João Paulo II. Aqui posso falar com toda a simplicidade, porque se não é para falar com toda clareza, nosso depoimento não teria muita utilidade.

Eu escolhi esses dois aspectos porque foram eles os que mais me marcaram nesse período. Primeiro, quanto à atitude e atividade da CNBB, particularmente de sua Presidência, no período do governo militar. Vocês certamente já conhecem várias coisas sobre isso, mas eu queria dizer como pude viver esse aspecto.

Quando assumi a presidência da CNBB, estava no Planalto o Presidente Arthur Costa e Silva. Pessoalmente, não tive muito contato com ele. Só me lembro de que dom Aloísio ainda era o Presidente da CNBB. Então, um dia, o Conselho Permanente da CNBB escreveu uma carta bastante forte ao Presidente da República. A Igreja começava a reclamar das arbitrariedades e da falta de respeito para com as pessoas. Costa e Silva estava em Petrópolis, e dom Aloísio telefonou para ele, perguntando se podia ir até lá, levar uma carta da direção da CNBB. Dom Aloísio foi e, quando chegou ao Palácio, ele já estava lá na porta esperando. E perguntou qual seria o conteúdo da carta. Ao ser informado, respondeu que não receberia a carta, e que dom Aloísio podia levá-Ia de volta para casa, e deixá-Ia lá, nos arquivos.

Depois, entrou o nosso gaúcho, o Médici. Foi interessante o contato que tive com ele. Um dia, dom Vicente Scherer veio de Porto Alegre para uma reunião e me convidou para visitar o Presidente Médici. E nós fomos. O Presidente não tinha muita conversa. Até que, a um certo momento, ele disse: Já que dom Ivo está aí, eu vou lhe fazer um pedido bem insistente, portanto, à direção da CNBB. E prosseguiu: Eu queria pedir aos senhores Bispos da CNBB que parem de criticar os atos do governo, que parem de dar lições a nós que estamos no governo. Esses assuntos são nossos, a administração da economia. E digo mais: se vocês não mudarem essa conversa, eu vou começar a dar catequese.

Então, dom Vicente pediu que eu respondesse, já que o Presidente havia se dirigido diretamente à CNBB. E eu disse: Sr. Presidente, em primeiro lugar, nós não vamos mudar de discurso. Nós não queremos nos envolver em questões técnicas. O que nós queremos é analisar e, se for o caso, criticar os aspectos éticos, inclusive dos atos do governo, como é o caso dos direitos humanos, da falta de democracia, da censura à imprensa, tortura, prisões. Estas coisas, nós temos que continuar a criticar. E eu ficaria muito feliz, se o senhor cumprisse o que prometeu: que agora, o senhor vai dar a catequese; pois, como o senhor sabe bem, a catequese não é só trabalho dos bispos, ou dos padres, ou das freiras. São os leigos, os pais de família que devem ser catequistas. E o senhor tem família, tem filhos, tem netos. Que coisa bonita o senhor nos disse: que vai começar a dar catequese.

Então, o Presidente não disse mais nada, e assim ficou.

Depois veio o Geisel. Ele tinha bem outro estilo. Era luterano. E era um homem bastante fino, preparado, além de ter também clara a incumbência das forças armadas. Ele, inclusive, quis começar a abertura lenta e gradual do regime. E ele sempre nos tratou bem.
Vocês sabem que ele deixou escrita uma autobiografia. Ele deu uma resposta a um grupo de jornalistas do Rio e depois pediu para rever, e disse: Só podem publicar depois da minha morte. Em seguida, ele saiu. Ele foi muito franco, conta toda sua história, como chegou à Presidência da República, além de abordar outras questões.

Uma vez, ele foi perguntado como é que se sentia, sendo luterano, diante da CNBB, que é católica, tantos bispos e cardeais. Ao que ele respondeu: Eu até me admirei, quando fui empossado. Para minha surpresa, havia vários cardeais presentes. Foi bonito. De fato, eu me dei muito bem com vários deles, no Rio de Janeiro, e também em Brasília. Quanto aos Lorscheider, com o de Fortaleza, dom Aloísio, a gente podia se tratar e conversar. Mas o outro, lá de Santa Maria, este era difícil. Mas ele, um dia, chegou a Santa Maria de avião, onde trocou de aeronave. Então, nos chamaram ao aeroporto, e eu fui até lá. Fomos logo para a pista, quando baixou o avião. Ele desceu e nós fomos ao encontro dele. Então, o Geisel fez um gesto assim, de amizade, de abertura de braços e veio sorrindo. A turma até me perguntou, depois, que intenções teve o Geisel, que estava assim tão familiarizado.

Depois dele, foi a vez do Figueiredo. Vocês conhecem bem a história dele. Ele já estava indicado para ser Presidente da República, mas não estava ainda empossado. Dom Aloísio era Presidente da CNBB e estava em uma reunião com a Comissão Central em Brasília, e ainda iria celebrar, à tarde. De repente, antes da missa, caiu no chão. Como ele tinha se submetido a cirurgias cardíacas, nós nos assustamos. Ele foi socorrido e levado para o hospital. Foi internado na UTI, sem poder receber visitas. Quando anoiteceu, veio um telefonema do hospital, de um oficial das forças armadas, dizendo que o Presidente indicado, Figueiredo, queria visitar dom Aloísio, lá no hospital. Não sei como ele soube. E foi, com um grupo de guardas e oficiais e forçou a entrada no hospital. Houve até um problema sério com a direção do hospital, que tinha proibido qualquer visita. Mas ele entrou. Foi uma coisa muito sem graça.

Então, esse oficial me telefonou, dizendo que o Presidente indicado, Figueiredo, já ia sair do hospital, onde visitou dom Aloísio, e que queria ir à CNBB. Mas eu respondi: Obrigado pelo aviso, mas quero que o senhor diga ao Presidente Figueiredo que ele não vai ser recebido aqui na CNBB. Ele fez um ato muito sem graça, sem educação, criou até uma crise lá no hospital. Por isso, ele não vai ser recebido aqui. Se depois de tomar posse como Presidente da República, ele quiser nos fazer uma visita, então nós o receberemos. E, de fato, ele não insistiu e nunca reclamou a esse respeito. E sempre nos recebeu, quando nós tínhamos de ir ao Planalto, e era bom para conversar. Com isso eu aprendi que nós, bispos, não devemos ser brutos, mas também não devemos ser frouxos. Os militares, apesar de tudo, tinham até respeito por nós, que não éramos subservientes, nem íamos calar as nossas posições éticas.

Depois entrou o Sarney, o tal Presidente democrático que vinha do Nordeste. Um de seus primeiros atos foi a publicação de uma grande lista de condecorados, incluindo bispos da CNBB, com a grande medalha, a de Rio Branco. Por acaso, eu também estava na lista, mas mandei dizer que eu não compareceria a essa condecoração. Disse a dom Luciano que ele poderia ir, se quisesse. Ele já era o secretário-geral. Eu não vou, pois já estão querendo nos comprar logo no início.

Não sei se dom Helder foi ou não. Também não me mandaram a medalha, e uns dias depois eu me encontrei com o Sarney e ele perguntou: Como é, dom Ivo, já passou a nossa briga, nossas raivas? E eu respondi: Eu não tenho raiva do senhor, só gostaria que o senhor entendesse que não achei bonito, logo no início dessa transição, ir lá receber grandes medalhas, depois de tudo o que aconteceu.

Bem, isso era o que eu queria dizer sobre a relação da CNBB com o regime militar. Quanto ao outro assunto, a relação com a Santa Sé, quando entrou o novo papa João Paulo II, eu já estava na Presidência da CNBB. Então, na primeira oportunidade que eu tive de ir a Roma, pedi uma audiência ao novo Papa, e fui recebido por ele. Ele era muito bom de se ouvir, era muito comunicativo, ouvia muito, e perguntava bastante, e dizia as suas opiniões.

Então ele disse: Bem, o Senhor venha aqui sempre que tiver algum assunto para nos dizer. Não é para nos elogiar ou para rasgar seda, porque eu não preciso disso. É só vir, que nós queremos ajudar.

Quando ele fez aquela grande visita ao Brasil, em 1980, eu pude ficar uns 12 dias viajando com ele no avião. Ele nos levava de uma cidade para outra. Impressionante, ele tinha uma cadeira lá na frente, no avião, e chamava um de nós, para conversar, para falar do discurso que ele iria fazer na etapa seguinte. Foi muito interessante.

Eu vou lhes contar um fato, só para mostrar como o Papa era assim muito zeloso e preocupado:

Em Fortaleza, haveria o grande encontro do Papa com os bispos da CNBB. Toda a grande imprensa brasileira estava presente. Aí, aconteceu um momento muito difícil para mim. Dom Aloísio, que era o arcebispo de Fortaleza, me telefonou dizendo que eu tinha nas mãos um problema muito sério, como Presidente da CNBB. Ele disse: Chegaram todos os discursos que o Papa vai pronunciar, aqui em Fortaleza, para os bispos. E, como eu tenho que preparar cópias e distribuir para os cônsules e jornalistas, então eu fiz uma coisa que eu achei que devia fazer: olhar o texto do discurso que ele iria ler para os bispos da CNBB. Mas, dom Ivo, se esses discursos forem lidos assim como estão, vai ser uma desgraça para nós. Vai ser tudo aquilo que O Globo, O Estado de São Paulo e outros jornais querem, e isso vai ser um grande passo para eles. Então, o que fazer?

Aí, eu respondi: Eu vou falar com o Papa.

Em uma dessas horas em que o Papa estava sozinho, eu fui bem pertinho e lhe disse: Eu vou dizer uma coisa bem delicada, eu sei. Eu nem sei se seria legítimo, pois sei que não tenho condições de dizer o que o senhor deve ou não dizer aos bispos do Brasil, pois o senhor é o Papa.

Então, eu contei minha conversa com dom Aloísio, e que havia passagens no discurso que iam ser um grande mal para os bispos do Brasil, para a CNBB, para o povo e, no fundo, para o Papa e para a Santa Sé.

Então, o Papa pediu uma cópia do discurso, e que eu lesse e assinalasse, ainda no avião, o que precisava ser mudado. E isso foi feito rapidamente. Assinalei algumas passagens e fui levar ao Papa, e lhe disse: Olha, Santidade, tem umas passagens que são exatamente a batalha contra a CNBB, que a imprensa aqui da direita faz. Então, isso vai fazer mal até ao Papa. Então, ele chamou o redator em língua portuguesa, e mandou que fizesse as alterações. Ele depois me falou:

Foi bom o senhor me dizer, porque eu vim ao Brasil para ajudar o Brasil, o episcopado, a CNBB, o povo, e não para estragar, e não para trazer problemas. Foi bom o senhor me dizer! (...)

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