Dom Eduardo Benes de Sales Rodrigues
Arcebispo de Sorocaba (SP)
Arcebispo de Sorocaba (SP)
A doutrina marxista, assumida em todos
os seus aspectos, exige a abolição da religião, para devolver as pessoas à
“realidade”e fazê-las sujeito do processo da redenção do ser humano. A pessoa,
na medida mesma em que vive da religião, ausenta-se da realidade necessitada de
transformação.
O pressuposto marxista é de que a religião desvia a atenção dos
problemas reais oferecendo pseudo-soluções de mero consolo para as
vítimas do sistema vigente e tranquilizando a consciência daqueles que, detendo
o poder, julgam-se benfeitores da humanidade.
Essa forma de compreender a religião
cria uma verdadeira aversão pela experiência religiosa e chegou mesmo a se
transformar em violento combate contra as instituições religiosas lá onde se
implantou o chamado “socialismo real”, como nos lembrava o Concílio Vat. II:
“Por isso, os que professam esta doutrina, quando alcançam o poder, atacam
violentamente a religião, difundindo o ateísmo também por aqueles meios de pressão
de que dispõe o poder público, sobretudo na educação da juventude.” (Vat. II,
GS n.20). Isto nos lembra o fervor religioso com que Saulo devastava a Igreja
lá em suas origens.
Ao abolir a religião a doutrina
marxista se apropria de seu dinamismo e de sua força motivadora, agora
transformados em mística política. Aqui se esconde a fascínio que a proposta
marxista exerceu, sobretudo em jovens à procura de um sentido de vida que lhes
justificasse o viver e o morrer. O que pode ser traduzido assim: “deixemos
de sonhar com a eternidade e ofereçamos nossa vida para realizar hoje, nessa
terra, o reinado do povo”.
No último artigo nessa coluna procurei
mostrar como as verdades fundamentais da fé cristã foram completamente
esvaziadas de seu conteúdo teológico para ganharem um sentido exclusivamente
antropológico materialista voltado para a prática política, considerada a
política o lugar da ação capaz de instaurar o reino do Homem. Assim: “ a) a
esperança de um novo céu e de uma nova terra - comunhão de todos no mistério da
Trindade – se torna esperança de uma comunhão plena pela implantação do paraiso
terrestre; b) o pecado original é substituido por outro mal radical: a
propriedade particular dos meios de produção; c) a classe oprimida e
crucificada ocupa o lugar do redentor crucificado, ressuscitando na história
como força revolucionária para implantar a nova sociedade; d) o partido
comunista substitui a Igreja, sendo ele a consciência do sentido da história e
o instrumento através do qual a classe operária tomaria o poder; e) a mística
religiosa se transforma em mística política, que exige a doação da própria
vida.”
Pano de fundo a presidir a conversão do
cristianismo em humanismo político é o materialismo dialético, segundo o
qual a matéria é eterna e está em permanente evolução chegando, com o
aparecimento do ser humano a um estágio novo, devendo a partir de então evoluir
para formas superiores de existência pela ação do ser humano sobre a natureza.
Com oparecimento da consciência começa a história humana que, desde seus
inícios, deve ser entendida como a história da luta de classes: “A história de
todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história da luta
de classes” (Manifesto Comunista 1848).
Marx profetizou o fim do capitalismo
pela tomada do poder pela classe operária e pela conseqüente instauração do
comunismo com um novo modo de produção onde a divisão entre capital e trabalho
seria definitivamente superada. Só então teríamos uma humanidade plenamente
reconciliada consigo mesma. O sonho com uma humanidade nova, com uma sociedade
plena de justiça, ganhou força histórica e produziu os heróis e também os
“mártires” da revolução socialista, que haveria de chegar a todos os recantos
do mundo.
A mística político-revolucionária
suscitou missionários sobretudo no meio da juventude. Che Guevara, argentino de
nascimento, que, depois de atuar na revolução cubana, deixou Cuba para servir à
revolução socialista na América latina, é o exemplo mais conhecido entre nós de
consagração à causa do socialismo. O pensamento marxista ganhou espaço em
nossas universidades sobretudo nos curso de ciências sociais e afins. Uma
parcela considerável de nossa juventude universitária, sedenta de verdade e
inconformada com as injustiças produzidas pelo capitalismo, aderiu ao marxismo
como doutrina e como prática política. Membros da JUC (Juventude Universitária
Católica) se sentiram impelidos a assumir a luta política em nome da própria
fé.
O diálogo com o marxismo, a assunção de
sua análise da sociedade e sua mística revolucionária instauraram uma profunda
crise, também de fé, em muitos universitários cristãos. A aposta no processo
revolucionário como a única via eficaz de transformação social e uma nova
compreensão da vida de fé como práxis política tornaram, em muitos, secundária
a experiência de Deus como fonte e fim último do próprio agir. A nova sociedade
– o homem novo –, a sociedade liberta de todas as formas de opressão, se tornou
o sentido último, a razão de ser do pensar e do viver. (continua).
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