sábado, 23 de fevereiro de 2013

Fé, ideologia e ateísmo



Qua, 20 de Fevereiro de 2013 16:38 / Atualizado - Qua, 20 de Fevereiro de 2013 17:15 por: cnbb

Dom Eduardo Benes de Sales Rodrigues
Arcebispo de Sorocaba (SP)

No último artigo para esta coluna, mostramos a influência do marxismo na teologia bem como as reservas do magistério da Igreja a respeito da utilização de sua interpretação da história, de seu método de análise.
Como venho tratando do ateismo, tendo como horizonte de reflexão o Ano da Fé, é de todo conveniente explicitar como se pode deturpar a fé quando não se mantém o absoluto de Deus como origem e sentido último de todas as coisas.
Retomo a afirmação do documento de Puebla quando  se referiu às duas ideologias: “Ambas as ideologias assinaladas - liberalismo capitalista e marxismo - se inspiram em humanismos fechados a qualquer perspectiva transcendente. Uma, devido a seu ateísmo prático; a outra, por causa da profissão sistemática de um ateísmo militante” (DP Cap.2: 5,5). Em que consiste o ateismo prático: professa-se na teoria a fé em Deus mas se vive e se organiza a sociedade sem levar em conta as exigências dessa fé. Ou, pior ainda, Deus se torna o protetor , o avalista de uma ordem social injusta. Nesse ponto é bom estar atento a crítica marxista da religião.
A religião pode ser usada para garantir, com chancela divina, uma ordem social injusta. Neste caso trata-se de algo pior que um ateísmo prático uma vez que faz Deus cúmplice  da injustiça institucionalizada. O Deus cristão é deformado e transformado em um ídolo, o guardião da riqueza acumulada por uma parcela da sociedade. A ideologização da fé, no caso, se constitui em fator de sustentação do sistema liberal-capitalista. Por isso o documento de Puebla, citado acima, situa dentro de um mesmo horizonte as duas ideologias, a liberal-capitalista e a marxista, quando afirma que ambas “se inspiram em humanismos fechados a qualquer perspectiva transcendente”.
Deus, na ideologia capitalista, não é alguém que chama para a conversão pessoal e social (EN), mas o guardião de uma ordem que não se quer mudada. Um Deus, portanto, que perde sua identidade e sua transcendência. Trata-se, pois, de um ídolo. Não é à toa que o documento de Puebla falou de idolatria da riqueza. Mas também quando Deus, ou a fé em Deus, é concebida e vivida em função de um processo revolucionário, ou seja, o processo revolucionário é que dá sentido à fé em Deus, estamos diante do mesmo fenômeno: a transformação da fé em Deus em sustentação de uma ideologia política, agora de caráter revolucionário.
A observação do Concílio Vat. II, na Gaudium et Spes a este respeito é esclarecedora quando coloca como uma das condicionantes do ateísmo o fato “de se ter atribuído indevidamente o caráter de absoluto a certos valores humanos que passam a ocupar o lugar de Deus. A própria civilização atual, não por si mesma, mas pelo fato de estar muito ligada com as realidades terrestres, torna muitas vezes mais difícil o acesso a Deus”(GS 19.
No marxismo se dá a negação explícita da existência de Deus, sendo a fé religiosa considerada como a consagração da alienação humana. Na ideologia liberal se dá a negação da transcendência pela criação de um deus domesticado que de forma alguma é o Deus de Jesus Cristo. Ao fazê-lo esta ideologia esvazia a transcendência de Deus e nega sua imanência verdadeira, ou seja, sua presença e atuação na história. Esta concepção ganha hoje força nova com o laicismo que invade a cultura.
O documento de Puebla nos adverte: “Não podemos desfigurar, parcializar ou ideologizar a pessoa de Jesus Cristo, nem fazendo dele um político, um líder, um revolucionário ou um simples profeta, nem reduzindo ao campo do meramente privado Aquele que é o Senhor da História”(DP 178). A fé cristã, ao professar o mistério da encarnação cujo desfecho é a Cruz e a Ressurreição, coloca-nos diante de um Deus que nos interpela e nos convida à conversão.
O Deus cristão é um Deus solidário com o sofrimento humano, mergulhado em nossa condição para transformá-la, um Deus que dá a vida para libertar-nos do pecado sob todas as suas formas e de todas as suas consequências.  Um Deus, portanto, que não compactua com atitudes e formas de convivência que negam a dignidade da pessoa humana. Donde o mesmo documento de Puebla oferecer-nos o autêntico conceito e alcance da libertação cristã quando fala de seus “dois elementos complementares e inseparáveis: a libertação de todas as servidões do pecado pessoal e social, de tudo o que transvia o homem e a sociedade e tem sua fonte no egoísmo, no mistério da iniqüidade, e a libertação para o crescimento progressivo no ser, pela comunhão com Deus e com os homens, que culmina na perfeita comunhão do céu, onde Deus é tudo em todos e não haverá mais lágrimas”(DP 482).
A experiência de Deus é graça de libertação do pecado e nos abre para o serviço do próximo e para participação na construção da sociedade pela prática da justiça no amor. A fé verdadeira leva ao empenho em construir um mundo justo, mesmo sabendo que a história será sempre a mistura de joio e trigo.

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