Dom Eduardo Benes de Sales Rodrigues
Arcebispo de Sorocaba (SP)
Arcebispo de Sorocaba (SP)
No último artigo para esta coluna,
mostramos a influência do marxismo na teologia bem como as reservas do
magistério da Igreja a respeito da utilização de sua interpretação da história,
de seu método de análise.
Como venho tratando do ateismo, tendo
como horizonte de reflexão o Ano da Fé, é de todo conveniente explicitar como
se pode deturpar a fé quando não se mantém o absoluto de Deus como origem e
sentido último de todas as coisas.
Retomo a afirmação do documento de Puebla
quando se referiu às duas ideologias: “Ambas as ideologias assinaladas -
liberalismo capitalista e marxismo - se inspiram em humanismos fechados a qualquer
perspectiva transcendente. Uma, devido a seu ateísmo prático; a outra, por
causa da profissão sistemática de um ateísmo militante” (DP Cap.2: 5,5). Em que
consiste o ateismo prático: professa-se na teoria a fé em Deus mas se vive e se
organiza a sociedade sem levar em conta as exigências dessa fé. Ou, pior ainda,
Deus se torna o protetor , o avalista de uma ordem social injusta. Nesse ponto
é bom estar atento a crítica marxista da religião.
A religião pode ser usada para
garantir, com chancela divina, uma ordem social injusta. Neste caso trata-se de
algo pior que um ateísmo prático uma vez que faz Deus cúmplice da
injustiça institucionalizada. O Deus cristão é deformado e transformado em um
ídolo, o guardião da riqueza acumulada por uma parcela da sociedade. A
ideologização da fé, no caso, se constitui em fator de sustentação do sistema
liberal-capitalista. Por isso o documento de Puebla, citado acima, situa dentro
de um mesmo horizonte as duas ideologias, a liberal-capitalista e a marxista,
quando afirma que ambas “se inspiram em humanismos fechados a qualquer
perspectiva transcendente”.
Deus, na ideologia capitalista, não é
alguém que chama para a conversão pessoal e social (EN), mas o guardião de uma
ordem que não se quer mudada. Um Deus, portanto, que perde sua identidade e sua
transcendência. Trata-se, pois, de um ídolo. Não é à toa que o documento de
Puebla falou de idolatria da riqueza. Mas também quando Deus, ou a fé em Deus,
é concebida e vivida em função de um processo revolucionário, ou seja, o
processo revolucionário é que dá sentido à fé em Deus, estamos diante do mesmo
fenômeno: a transformação da fé em Deus em sustentação de uma ideologia
política, agora de caráter revolucionário.
A observação do Concílio Vat. II, na
Gaudium et Spes a este respeito é esclarecedora quando coloca como uma das
condicionantes do ateísmo o fato “de se ter atribuído indevidamente o caráter
de absoluto a certos valores humanos que passam a ocupar o lugar de Deus. A
própria civilização atual, não por si mesma, mas pelo fato de estar muito
ligada com as realidades terrestres, torna muitas vezes mais difícil o acesso a
Deus”(GS 19.
No marxismo se dá a negação explícita
da existência de Deus, sendo a fé religiosa considerada como a consagração da
alienação humana. Na ideologia liberal se dá a negação da transcendência pela
criação de um deus domesticado que de forma alguma é o Deus de Jesus Cristo. Ao
fazê-lo esta ideologia esvazia a transcendência de Deus e nega sua imanência
verdadeira, ou seja, sua presença e atuação na história. Esta concepção ganha
hoje força nova com o laicismo que invade a cultura.
O documento de Puebla nos adverte: “Não
podemos desfigurar, parcializar ou ideologizar a pessoa de Jesus Cristo, nem
fazendo dele um político, um líder, um revolucionário ou um simples profeta,
nem reduzindo ao campo do meramente privado Aquele que é o Senhor da
História”(DP 178). A fé cristã, ao professar o mistério da encarnação cujo
desfecho é a Cruz e a Ressurreição, coloca-nos diante de um Deus que nos
interpela e nos convida à conversão.
O Deus cristão é um Deus solidário com
o sofrimento humano, mergulhado em nossa condição para transformá-la, um Deus
que dá a vida para libertar-nos do pecado sob todas as suas formas e de todas
as suas consequências. Um Deus, portanto, que não compactua com atitudes
e formas de convivência que negam a dignidade da pessoa humana. Donde o mesmo
documento de Puebla oferecer-nos o autêntico conceito e alcance da libertação
cristã quando fala de seus “dois elementos complementares e inseparáveis: a
libertação de todas as servidões do pecado pessoal e social, de tudo o que
transvia o homem e a sociedade e tem sua fonte no egoísmo, no mistério da
iniqüidade, e a libertação para o crescimento progressivo no ser, pela comunhão
com Deus e com os homens, que culmina na perfeita comunhão do céu, onde Deus é
tudo em todos e não haverá mais lágrimas”(DP 482).
A experiência de Deus é graça de
libertação do pecado e nos abre para o serviço do próximo e para participação
na construção da sociedade pela prática da justiça no amor. A fé verdadeira
leva ao empenho em construir um mundo justo, mesmo sabendo que a história será
sempre a mistura de joio e trigo.
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