Seg, 24 de Dezembro de 2012 08:30 por: cnbb
“A
alegria de ser chamado a servir a Deus, levando o seu amor às pessoas e a todos
os povos (cf. AG 10), ninguém pode arrancar do coração de quem exerce uma
missão que tem sua base e motivação no Evangelho”. É com esta declaração que
dom Erwin Krautler, bispo da Prelazia do Xingu, resume sua atuação no Brasil há
mais de 40 anos, evangelizando sua comunidade.
Nesta caminhada, ele esteve engajado em
diversas causas, entre elas, a mais recente, em oposição à construção da
hidrelétrica de Belo Monte. “Como bispo tenho que conviver com diversos pontos
de vista e tolerar, às vezes mesmo a contragosto, posições opostas à minha. Em
momento algum isso significa abrir mão do credo que professo e da posição
contra Belo Monte que sempre assumi e continuo sustentando, considerando-o uma
insanidade. Infelizmente não existe meio termo. Belo Monte é de todo
inaceitável e ilegal e nunca deixa de ser”, disse o bispo à IHU On-Line.
Na entrevista a seguir, concedida por
e-mail, dom Erwin comenta a atual situação de Altamira desde a construção da
hidrelétrica de Belo Monte e acentua o comportamento dos povos indígenas que
vivem próximos ao canteiro de obras. “Aí se percebe nitidamente que a Norte
Energia usa de todos os meios para calar os indígenas e impedir que se
manifestem. Recebem cestas básicas, voadeiras, combustível, benefícios que
nunca imaginaram. Como explicar-lhes que esses presentes são um cavalo de Troia
e aceitá-los significa dar um tiro no próprio pé?”, questiona.
Ele conta que após a eleição de Dilma
tentou agendar uma reunião com a presidente, mas ao ouvir o discurso de
Gilberto Carvalho, ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da
República, a favor de Belo Monte, desmarcou o encontro. “O que ainda iria fazer
no gabinete do ministro? Trocar amenidades e posar para fotos? Já que a
declaração do ministro revelou toda a intransigência do governo, eu mesmo
cancelei a audiência”, lamenta.
A dois anos de tornar-se bispo emérito,
dom Erwin diz que isso “não significa ‘entregar os pontos’. Meu empenho em
favor da dignidade e dos direitos dos povos indígenas, dos ribeirinhos, das
mulheres, das crianças, dos jovens, dos expulsos de casa e terra, dos agredidos
e machucados, enfim, de todos os ‘excluídos do banquete da vida’ e minha defesa
do meio ambiente, o ‘lar’ que Deus criou para todos nós, vão continuar enquanto
Deus me der o fôlego”.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Que
avaliação faz da caminhada de luta em oposição a Belo Monte e aos projetos de
infraestrutura na Amazônia durante os últimos anos?
Dom Erwin Krautler – Por ocasião
da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, Rio+20, o
movimento Xingu Vivo para Sempre convocou indígenas, pescadores, ribeirinhos,
movimentos sociais, estudantes e acadêmicos, ativistas e defensores do Xingu
para comemorar os 23 anos que se passaram desde o Primeiro Encontro dos Povos
Indígenas do Xingu (20 a 25 de fevereiro de 1989) em Altamira. O evento foi
chamado de “Xingu+23“ em analogia ao “Rio+20“ e quis lembrar a primeira grande
vitória contra o projeto de barramento do rio Xingu que naquele tempo levou o
nome de Kararaô, um grito de guerra do povo Kayapó, o povo indígena mais
numeroso do Xingu. Na realidade, a luta contra o projeto é bem mais antiga e começou
já nos anos 1970 quando os militares cogitaram a construção de seis grandes
usinas ao longo do rio Xingu: Jarina, Kokraimoro, Ipixuna, Babaquara, Kararaô e
Iriri. O Encontro dos Povos Indígenas em 1989 tornou a rejeição do projeto da
parte dos indígenas apenas mais visível e chamou a atenção do Brasil e da
comunidade internacional para o planejado golpe no coração da Amazônia.
Ironia da história
Ironia da história: Lula, que elegemos
porque acreditávamos que outro Brasil fosse possível, pouco depois de tomar
posse tirou o projeto das gavetas, desconsiderando o que durante a campanha
eleitoral havia falado nos palanques sobre a Amazônia. Passou a defender o que
antes severamente criticou e a considerar o projeto hidrelétrico no Xingu
essencial para o progresso, vaticinando o colapso total da economia do país
caso não seja concretizado. Substituiu-se apenas o nome de Kararaô por Belo
Monte para ninguém mais lembrar o facão da Tuíra e os índios de 1989 pintados
de urucum e jenipapo.
Não acredito que haja no Brasil outro
movimento de luta em defesa do meio ambiente contra um megaprojeto
governamental com uma história tão longa. Alguém talvez venha retrucar: “Mas,
infelizmente, lutaram em vão, já que o projeto está sendo executado a pleno
vapor e, depois de já ter gasto bilhões de reais, dificilmente o governo vai
recuar!“ De fato, a cada dia que passa mais explosões ensurdecedoras atormentam
a população no entorno do canteiro de obras. A cada dia que passa mais
destruição se alastra pela região. A ensecadeira se estende rio adentro e o
desmatamento avança nas ilhas e na terra firme da Volta Grande do Xingu. Mas,
mesmo assim, nada de enrolar a bandeira! Sabemos que Belo Monte não é a única
barragem planejada no Xingu. Nossa luta tem também por objetivo evitar que o
antigo projeto dos militares seja desenterrado na sua totalidade.
Quantos cientistas e especialistas não
alertaram o governo que o Xingu durante três ou quatro meses no ano não terá o
volume d’água suficiente para rodar uma única turbina sequer? Muitos! E todo
mundo sabe que é economicamente absurdo deixar sem funcionar as turbinas que
são a parte mais cara de todo o empreendimento. A solução reside em mais
barramentos rio acima como já foi previsto no projeto dos militares, com
impactos mais desastrosos ainda que a própria Usina Hidrelétrica de Belo Monte.
Esse projeto de mais barragens é tratado como segredo de estado. Habilmente se
evita toda a discussão em torno deste espectro que então sacrificará todo o rio
Xingu com consequências não só para Altamira, mas também para todas as vilas
ribeirinhas e áreas indígenas nas margens do rio, chegando a atingir até a
cidade de São Félix do Xingu.
Cruzar os braços
Outro motivo de não cruzarmos os braços
são os mais de cinquenta (50!) processos que correm na Justiça brasileira e
internacional denunciando violações da Constituição Federal e de tratados
internacionais de que o Brasil é signatário. São ações movidas pelo Ministério
Público Federal, pela Defensoria Pública Estadual do Pará como por entidades da
sociedade civil, entre estas o Conselho Indigenista Missionário – CIMI,
organismo vinculado à CNBB. Estes processos estão, em parte há anos, sem a
Justiça tomar nenhuma providência. Quais são os reais motivos desta morosidade?
Omissão ou negligência são inaceitáveis num Estado que se diz democrático e de
Direito.
Finalmente, enquanto não forem
cumpridas todas – todas mesmo! – condicionantes exigidas pelo Ibama e pela
Funai como requisitos para dar início à construção de Belo Monte, não
deixaremos de denunciar a ilegalidade da obra.
IHU On-Line – Quais
as principais alegrias e desafios de ser um líder religioso em uma região como
a do Xingu, onde a comunidade e a Igreja estão divididas por causa de Belo
Monte?
Dom Erwin Krautler – A alegria de ser
chamado a servir a Deus, levando o seu amor às pessoas e a todos os povos (cf.
Ad Gentes 10), ninguém pode arrancar do coração de quem exerce uma missão que
tem sua base e motivação no Evangelho. Esta missão não se restringe a um mero
anúncio de verdades. Evangelizar implica primeiramente no testemunho de uma fé
arraigada na Palavra de Deus e na convicção de que esse mesmo Deus é um Deus
que anda conosco pelas estradas e rios de nossa vida. Evangelizar é estar
continuamente a serviço deste Deus, consagrando a vida a Ele e a seu Povo, e
isso sem medir esforços e alegar cansaço. “Amou-os até o fim” lemos no
Evangelho de São João para introduzir o episódio do lava-pés (Jo 13,1).
Evangelizar não exclui o diálogo
aberto, franco, respeitoso. Um monólogo autoritário é antievangélico quando
tenta arrasar com quem tem outra visão do mundo e condenar ao inferno a quem
não reza pela nossa cartilha. Como bispo tenho que conviver com diversos pontos
de vista e tolerar, às vezes mesmo a contragosto, posições opostas à minha. Em
momento algum isso significa abrir mão do credo que professo e da posição
contra Belo Monte que sempre assumi e continuo sustentando, considerando-o uma
insanidade. Infelizmente não existe meio termo. Belo Monte é de todo
inaceitável e ilegal e nunca deixa de ser. A decisão tomada pelos governos Lula
e Dilma de construir Belo Monte é imperdoável porque nunca haverá uma chance
mínima de reparar os erros monstruosos cometidos. Ao inaugurar Belo Monte
teremos alcançado um ponto sem retorno. Em outras palavras: não adiantará mais
chorar o leite derramado.
O cenário mudou
A Igreja, como o povo do Xingu em
geral, está dividida na avaliação de Belo Monte. No entanto, os que defendem o
projeto já não estão mais tão eufóricos como anos atrás quando colaram adesivos
“Queremos Belo Monte” em seus carros. Os adesivos desapareceram. Os que aprovam
o projeto, o fazem hoje com reservas e muitas exigências. Os políticos há tempo
desceram de seus palanques porque esgotaram os argumentos bombásticos em favor
do “progresso” que só Belo Monte seria capaz de trazer para a região. Ensacaram
a viola. Aliás Belo Monte nem sequer foi tema nos comícios da última campanha
eleitoral. Os candidatos bem sabiam por que evitaram falar em Belo Monte. Iriam
levar estrondosas vaias. Incrível com que rapidez o cenário mudou. A tendência
é que, na medida em que a obra avança, o povo está se dando conta de que, até
agora, nada ou muito pouco do que foi prometido está sendo cumprido. Altamira,
uma cidade de mais de 120 mil habitantes, está mergulhado num tremendo caos. Os
operários contratados pela empresa CCBM logicamente apreciam ter encontrado
emprego, se bem que seja temporário. Mesmo assim há frequentes manifestações de
insatisfação. Há até operário preso. Com toda razão exigem melhores condições
de trabalho e salários que permitam enfrentar a inadmissível carestia que
impera em Altamira.
As feições do povo que frequenta as
Igrejas em Altamira mudaram. Entre as (os) fiéis tradicionais aparecem muitos
rostos novos. São homens e mulheres, casais e famílias, que vieram de outros
estados e trabalham nas empresas ligadas à construção de Belo Monte. Querem
participar das celebrações e iniciativas de sua Igreja e tem todo o direito de
fazê-lo, mas é óbvio que não se manifestam contra Belo Monte ou criticam o projeto,
pois provavelmente correriam o risco de perder o emprego.
Enalterado, também dentro da Igreja,
ficou o grupo que categoricamente rejeita Belo Monte. Embora sejam poucas
pessoas em relação à grande massa que é indecisa e opta por uma posição de
aguardar “para ver como é que fica“, essa parcela do Povo de Deus mais ativa e
combatente não se deixa intimidar nem por ameaças, nem por calúnias, difamações
e outros tipos de perseguição.
IHU On-Line – Irmã
Ignez Wenzel comentou sobre a desarticulação entre as comunidades indígenas por
conta das obras. Quais são as razões desse comportamento? Pesquisadores,
antropólogos e religiosos estão mais preocupados com a questão indígena do que
os próprios índios?
Dom Erwin Krautler – A questão é
complexa. É perigoso generalizar, afirmando que os indígenas estão menos
preocupados. Do mesmo jeito como em toda a sociedade do Xingu (do Brasil e do
mundo), há também entre os indígenas diferentes posições em relação a Belo
Monte. Religiosos, antropólogos, professores e outros profissionais conhecem
talvez melhor os meandros e as propostas insidiosas do sistema neoliberal que
está na base do “desenvolvimentismo” que confunde desenvolvimento com
crescimento meramente econômico, multiplicação de riqueza material, incremento
do PIB, expansão do agronegócio, aumento de produção de biocombustíveis. Os
indicadores sociais são colocados em um plano inferior. A defesa do meio
ambiente não passa de recheio nos discursos da presidente em Brasília para
impressionar quando fala na ONU e em outras oportunidades no exterior como há
poucos dias em Paris.
Essa realidade os indígenas, pelo menos
os velhos caciques, certamente nunca estudaram e por isso não se dão conta do
perigo que correm. No sistema vigente, o que importa é produzir, lucrar, tirar
vantagem, consumir. O “ter“ triunfa sobre o “ser“. Esse sistema é cruel e
diametralmente oposto ao que os indígenas andinos chamam de Sumak Kawsay (ou
“Bem Viver“). É um câncer que dissemina metástases em todo o tecido social. E é
uma ilusão pensar que os povos indígenas sejam imunes contra este câncer. Todo
o nosso empenho e acompanhamento visam ajudá-los a evitar a contaminação.
Posições
Os Kayapó do Alto Xingu, sob a
liderança do cacique-patriarca Raoni Metuktire, rejeitam qualquer barragem do
rio. É para eles uma questão fechada. Só que Belo Monte é geograficamente muito
distante de suas aldeias e essas, na primeira fase da construção do complexo
hidrelétrico do Xingu, não serão impactadas diretamente. Por isso os Kayapó do
Alto Xingu não mais se manifestaram de modo tão contundente como antes o
fizeram quando Raoni mesmo veio a Altamira para prestigiar eventos contra Belo
Monte.
Outra é a situação dos povos que vivem
mais próximos ao canteiro de obras. Aí se percebe nitidamente que a Norte
Energia usa de todos os meios para calar os indígenas e impedir que se
manifestem. Recebem cestas básicas, voadeiras, combustível, benefícios que
nunca imaginaram. Como explicar-lhes que esses presentes são um cavalo de Troia
e aceitá-los significa dar um tiro no próprio pé? Quem antes foi tratado como
pária e de repente avança para padrões de príncipe, dificilmente entende uma
advertência de que essas regalias são prejudiciais a ele e a seu povo. Na
realidade, o dinheiro fácil corrói a sociedade indígena, corrompe lideranças,
destrói a organização interna de um povo, faz os índios perder a sua
identidade. Tem sistema atrás disso. Quando os indígenas “deixam de ser
indígenas“ perdem também suas terras ancestrais, cobiçadas desde sempre pelas
mineradoras, pelos madeireiros e latifundiários. Chamo essa investida contra os
índios de “auricídio“ (do latim aurum: ouro).
Matam-se os indígenas com dinheiro,
entopem-se-lhes as gargantas com dinheiro a ponto de não mais poderem gritar,
implanta-se um consumismo desenfreado no seio das comunidades e exterminam-se
deliberadamente os valores e a sabedoria milenar de um povo. E o pior é que se
afirma em alto e bom som que tudo é feito “em favor dos índios para tirá-los
finalmente da era da pedra lascada“. Através do dinheiro se tenta ressuscitar
os parâmetros das antigas constituições brasileiras que defendiam “a
incorporação dos silvícolas à comunhão nacional“, programa etnocida que
achávamos definitivamente superado com a Constituição de 1988.
IHU On-Line – O
senhor voltou a dialogar com o governo na tentativa de paralisar Belo Monte?
Como vê, nesse sentido, a atuação do Ministério Público Federal, que por vezes
determina a paralisação da obra?
Dom Erwin Krautler – Já em outubro 2009
percebi que o presidente Lula, embora tenha insistido em continuar o que chamou
de diálogo, na realidade não estava nada interessado em discutir Belo Monte.
Aliás o “diálogo“ de que ele falou não passou de encenação. Tentei ainda um
encontro com a Dilma. Fui informado que Gilberto Carvalho, ministro-chefe da
Secretaria-Geral da Presidência da República, estaria disposto a receber-me em
audiência. Mas poucos dias antes da data marcada para a audiência ele discursou
num encontro das pastorais sociais da CNBB e declarou que Belo Monte era
irreversível e irrevogável. O que ainda iria fazer no gabinete do ministro?
Trocar amenidades e posar para fotos? Já que a declaração do ministro revelou
toda a intransigência do governo, eu mesmo cancelei a audiência.
E o papel do Ministério Público
Federal? Das 15 ações judiciais contra ilegalidades no licenciamento da
construção de Belo Monte, encaminhadas pelo Ministério Público Federal, apenas
uma transitou em julgado. Este balanço revela a “importância“ que é dada hoje a
este órgão de defesa dos direitos constitucionais do cidadão. Às vezes me dá
até dó ver o esforço de nossos Procuradores da República. Será que não se
sentem supérfluos e inúteis dentro do poder Judiciário, que não aprecia o seu
empenho, engavetando sistematicamente as ações elaboradas com esmero e competência?
IHU On-Line – Como o
senhor vê a discussão acerca da mineração no Norte e Nordeste? É possível dizer
que Belo Monte servirá para facilitar a mineração?
Dom Erwin Krautler – Respondo com a
pesquisadora Telma Monteiro, que colabora com o Xingu Vivo para Sempre e quem
estimo muito. Num artigo publicado no Correio da Cidadania (11-09-2012) ela
adverte que “a implantação do projeto da hidrelétrica Belo Monte é a forma de
viabilizar definitivamente a mineração em terras indígenas e em áreas que as
circundam, em particular na Volta Grande, trecho de mais de 100 quilômetros que
vai praticamente secar com o desvio das águas do Xingu. E é justamente nas
proximidades do barramento principal, no sítio Pimental, que está sendo montado
o maior projeto de exploração de ouro do Brasil, que vai aproveitar o fato de
que a Volta Grande ficará seca por meses a fio com o desvio das águas do rio
Xingu“. Critica ainda: “Incrível como, além das hidrelétricas, os projetos de
mineração, na visão do governo federal e do governo do Pará, também se tornaram
a panaceia para solucionar todos os problemas não resolvidos de desenvolvimento
social. Papel que seria obrigação do Estado, com o dinheiro dos impostos pago
pelos cidadãos de bem“. Sempre o mesmo lero-lero que já estamos cansados de
ouvir: os problemas sociais da Amazônia só poderão ser solucionados se, de mãos
beijadas, a lotearmos e entregarmos lote por lote a empresas estrangeiras.
Desta vez a felizarda é a Belo Sun Mining Corporation com sede em Toronto,
Canadá, que em breve auferirá lucros astronômicos rindo da cara dos
brasileiros. E ainda há quem brada que a “Amazônia é nossa“ e repete o discurso
de Lula em 2007: “Precisamos dizer que somos os donos da Amazônia e que sabemos
cuidar das nossas florestas, da nossa água, não precisa ninguém dar palpite”.
Quem são realmente os donos? Sabemos realmente cuidar das nossas florestas, da
nossa água? Não seria mais correto chorar desde já a mãe Amazônia pois ela foi
vendida ao grande capital para ser violentada sem escrúpulos até morrer de
inanição!
IHU On-Line – Daqui
dois anos o senhor enviará ao Papa o pedido de renúncia, conforme denomina o
Direito Canônico. O senhor já faz planos para os próximos anos? Pretende
continuar na região do Xingu?
Dom Erwin Krautler – O Cânone 401 § 1
do Direito Canônico reza que o bispo “que tiver completado setenta e cinco anos
de idade, é solicitado a apresentar a renúncia do ofício ao Sumo Pontífice,
que, ponderando todas as circunstâncias, tomará providências“. Em outra
palavras: é o Papa que decide se aceita logo a renúncia ou se pede ao bispo
continuar por mais algum tempo. Não fiz nenhum plano para “o dia seguinte“, mas
tornar-se bispo “emérito“, logicamente não significa “entregar os pontos“. Meu
empenho em favor da dignidade e dos direitos dos povos indígenas, dos
ribeirinhos, das mulheres, das crianças, dos jovens, dos expulsos de casa e
terra, dos agredidos e machucados, enfim, de todos os “excluídos do banquete da
vida“ e minha defesa do meio ambiente, o “lar“ que Deus criou para todos nós,
vão continuar enquanto Deus me der o fôlego.
IHU On-Line – Como é
para o senhor viver no Brasil, especialmente num estado em que há milhares de
problemas sociais, ambientais, numa conjuntura completamente diferente da sua
origem?
Dom Erwin Krautler – Cheguei a Altamira
em dezembro de 1965, ainda jovem. A decisão pelo Xingu foi uma decisão pessoal.
Os superiores religiosos apenas concordaram e me deram luz verde. Jamais me
arrependi de ter feito esta opção. O Xingu tornou-se minha terra, o chão em que
vivo a minha vida. Não nego as minhas raízes e não deixei de amar o país da
minha família e de meus antepassados, mas nunca cultivei saudosismos para com a
terra onde nasci, avaliando o que na Áustria estaria melhor ou analisando a conjuntura
de lá, comparando-a com os problemas que aqui enfrentamos.
Tempos atrás redigi uma mensagem que
muitas vezes já foi usada em celebrações de envio de missionárias e
missionários. Esse texto traduz o que ser missionário sempre significou para
mim:
“Vai meu irmão, minha irmã! Lá, em tua
nova missão, em tua nova terra, em tua nova pátria, anunciarás Jesus Cristo e o
seu Evangelho. Servirás aos pobres, aos excluídos do banquete da vida,
lavando-lhes os pés. Falarás com quem nunca andou ou não anda mais conosco.
Aproximar-te-ás com muito carinho a um
povo com cultura e tradições diferentes. Chegando lá, estranharás, sem dúvida,
os costumes e usos locais. Mas, não imporás as tuas ideias! Não apresentarás o
país que te viu nascer como paraíso! Não dirás nunca que no lugar onde te
criaste, as coisas estão bem melhores!
Não darás nunca a impressão de que
vieste para ensinar, para civilizar, para instruir, para colonizar! Jamais
violentarás a alma do povo que, doravante, será o teu povo!
Oferecerás simplesmente o testemunho de
tua fé, de tua esperança e de teu amor, e darás a tua vida até o fim, até as
últimas consequências! Assim, tu terás o privilégio e a felicidade de viver a
graça de todas as graças: encontrarás o Senhor que disse: 'Depois que eu
ressuscitar, irei à vossa frente para a Galileia' (Mc 14,28). Missão é sempre
ir à Galileia, às Galileias de todos os continentes!“
IHU On-Line – Depois
de todos esses anos na região, qual foi a luta mais difícil na sua trajetória?
Dom Erwin Krautler – Sempre lembro com
carinho nosso empenho em 1987-1988 durante a Assembleia Nacional Constituinte
para que os direitos indígenas fossem inscritos na Constituição da República.
Foi uma luta sem tréguas, mas os povos indígenas e nós, os seus aliados, saímos
vitoriosos. Para quem quiser conferir, há um capítulo específico na Carta Magna
do País que fala “Dos Índios“ (Art. 231 e 232). Essa luta, porém não terminou.
Trata-se de concretizar o que está escrito aí.
A luta mais desgastante, no entanto, é
sem dúvida a que travamos contra a hidrelétrica Belo Monte, que já dura tantos
anos.
IHU On-Line – Estamos
na época do Advento. O que esta época de natividade, como nascimento de Jesus,
pode trazer de reflexão para os dias de hoje, para os governantes,
especialmente em relação a Belo Monte?
Dom Erwin Krautler – Eu não sei se o
sentido profundo do Advento e Natal mexe com o coração de nossos governantes,
ministros e outros membros do governo. Talvez nem falem mais em Natal. Preferem
substituir a lembrança do Nascimento de Jesus com um termo mais secularizado:
“Festas de Fim de Ano“. E muito menos sei se esta gente, ouvindo eventualmente
o “Noite Feliz“, se lembra das famílias expulsas de suas terras por causa de
Belo Monte. Essas famílias não experimentam nada de noite feliz, enquanto os
responsáveis pela sua desgraça se banqueteiam em confraternizações com as mais
finas iguarias, regadas a bebidas seletas.
IHU On-Line – O que a
experiência de Jesus Libertador pode ensinar e inspirar a prática cristã de
hoje?
Dom Erwin Krautler – Responder a essa
pergunta equivaleria a uma dissertação sobre os fundamentos e toda a história
da Teologia da Libertação e sua contribuição valiosa para a Igreja na Amazônia,
especialmente para as Comunidades Eclesiais de Base – CEBs, que continuam sendo
o chão concreto em que esta forma de reflexão teológica até hoje está dando
seus frutos e que gerou seus mártires. Precisaria também desmontar todos os
mal-entendidos a respeito desta teologia, disseminados pelo Brasil e mundo
afora, especialmente em ambientes em que se fecham os olhos e se tapam os
ouvidos diante das injustiças de um sistema desumano, excludente, opressor e de
violências estruturais que causam a morte de tantos homens, mulheres e crianças
e do meio ambiente em que vivem.
IHU On-Line – Deseja
acrescentar algo?
Dom Erwin Krautler – Sim, votos de um
abençoado Advento e Santo Natal do Senhor. Que Deus nos conceda sua graça e
paz, neste Natal, durante o Ano Novo e sempre.
Fonte: Revista IHU
On-Line e CIMI
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