Ter, 11
de Junho de 2013 13:47 por: cnbb
Cardeal Odilo Pedro Scherer
Arcebispo de São Paulo/SP
Arcebispo de São Paulo/SP
No dia 1º de junho, a Igreja Católica recordou os
mártires São Justino e seus companheiros. Nascido na Palestina de época romana,
na hodierna Nablus, Justino foi um filósofo eclético que, na juventude, migrou
por várias correntes filosóficas; finalmente, abraçou a fé cristã, entendendo
ter encontrado nela a verdade, que tanto buscava. No ano 165, foi martirizado
em Roma, onde abrira uma escola filosófica, com vários companheiros, sendo
imperador Marco Aurélio. As Atas dos Mártires narram seu martírio.
Presos sob a acusação de “heresia”, por se
recusarem a adorar o imperador e seus deuses oficiais, Justino e seus
companheiros foram interrogados por Rústico, prefeito da cidade. Depois de
arguir os acusados quanto às suas convicções, Rústico os ameaçou: “agora vamos
ao que interessa: aproximai-vos e, todos juntos, sacrificai aos deuses. Se não
o fizerdes, sereis torturados sem compaixão”. Diante da recusa firme dos cristãos,
o prefeito sentenciou: “os que não quiseram sacrificar aos deuses e obedecer à
ordem do imperador, depois de flagelados, sejam levados para sofrer a pena
capital”. E assim, Justino e seus companheiros foram torturados e decapitados.
O Cristianismo conheceu perseguição e martírio
desde a sua primeira hora. O próprio Jesus Cristo morreu mártir e seus
apóstolos, da mesma forma. Esclareço que, no sentido cristão, não é “mártir”
quem se auto-imola por uma causa, mas quem é morto por outros, por causa da sua
fé. Foram muitos os mártires ao longo da história da Igreja. O papa João Paulo
II constatava, na virada do milênio, que o século XX foi o que teve o maior
número de mártires.
Os cristãos continuam sendo o grupo religioso mais
perseguido em todo o mundo. Se aqui me refiro apenas aos cristãos, não é por
desconhecer que existem discriminações e violências também contra outros grupos
religiosos. Há poucos dias, Silvano Maria Tomasi, observador permanente da
Santa Sé na ONU, em Genebra, fez uma denúncia alarmante: mais de 100 mil
cristãos têm sido assassinados anualmente em todo o mundo por razões ligadas,
de alguma maneira, à sua fé.
De 196 países avaliados recentemente, 131 não
apresentaram sinais de perseguição religiosa; em outros 49 países, porém,
verificaram-se muitos episódios de perseguição e violência contra os cristãos.
Chama a atenção que essa violência acontece, geralmente, onde o Estado não é
“laico” e deixa de assegurar a liberdade religiosa a todos os seus cidadãos, ou
até impõe uma religião oficial a toda a população.
Esses dados impressionantes foram, de alguma forma,
também trazidos a público e confirmados em recentes manifestações da Associação
Internacional pela Liberdade Religiosa (IRLA), que realizou em São Paulo, entre
os dias 23 e 25 de maio, um Festival Mundial de Liberdade Religiosa.
Estranhamente, esses fatos graves têm escassa ressonância e espaço na opinião
pública ocidental.
O artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos
Humanos dispõe que toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de
consciência e de religião; este direito inclui também a liberdade de mudar de
religião ou de crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença pelo
ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente,
em público ou em privado.
Se Justino vivesse hoje, ainda correria o risco de
perder a cabeça por causa de suas convicções religiosas e de ver crescendo o
número de seus companheiros... Lamentavelmente, 65 anos depois da Declaração da
ONU, o direito à liberdade religiosa ainda não é respeitado em muitas partes do
mundo; pelo contrário, adotam-se novas leis severamente restritivas, até mesmo
contra a liberdade de consciência, que vetam a mudança de crença ou religião,
sob a ameaça de pesadas sanções, inclusive a pena de morte.
Não cessou o cerceamento à liberdade religiosa com
a superação dos regimes totalitários e anti-religiosos que, sobretudo no século
XX, impediram a livre manifestação da fé religiosa de cristãos e não-cristãos e
tentaram manipular ou erradicar a religião, promovendo a perseguição e até a
eliminação sistemática de quem ousasse professar publicamente a fé.
É comum que ideologias e regimes totalitários
tendam a instrumentalizar a religião em seu proveito, ou a restringir a
liberdade religiosa dos cidadãos, por considerá-la um empecilho aos seus
propósitos.
Uma das formas sutis de perseguição religiosa é o
tratamento preconceituoso e discriminatório dos praticantes de alguma fé
religiosa, como se fossem cidadãos “desqualificados”, com menos direitos e
credibilidade, cujas convicções não devem ser levadas em consideração, ainda
que não sejam sobre questões religiosas. Toleram-se até as convicções
religiosas nos espaços da vida privada, mas nega-se a sua contribuição para o
convívio social e a cultura.
Essa forma velada de preconceito e discriminação
acontece também em países do Ocidente, onde pessoas aderentes à fé religiosa
precisam lutar por seus direitos civis e pelo respeito aos mais primários
direitos humanos.
Por vezes, atribui-se de maneira primária à religião
a culpa de conflitos e guerras e sugere-se a sua supressão, como fórmula para
alcançar a paz; não se percebe, neste caso, que muitos conflitos ditos
“religiosos”, de fato, não são motivados por questões religiosas, mas por
ideologias políticas que instrumentalizam a religião para alcançar seus
objetivos.
A liberdade religiosa e de consciência é um direito
humano fundamental, que pode ser assegurado somente quando a postura do Estado
é pautada pela verdadeira laicidade, que não é de intolerância nem discriminação,
mas de garantia para que todos os cidadãos exerçam, sem impedimento, suas
escolhas em relação à religião.
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