quarta-feira, 30 de abril de 2014

O Povo de Deus




FONTE: CNBB (Quarta, 30 Abril 2014 13:00
Cardeal Orani João Tempesta
Arcebispo do Rio de Janeiro (RJ)

O segundo livro do Código de Direito Canônico é o que mais diretamente retrata o Concílio Vaticano II. O próprio título “Povo de Deus” é extraído da Constituição Dogmática “Lumen Gentium”. Muitos cânones praticamente nada mais são que a transcrição do documento conciliar. A grande novidade, além de todo o conteúdo, é a inversão da elaboração do tema. Na base estão os fiéis e, entre estes, os leigos ocupam numericamente, o primeiro lugar.

Todo este livro pode ser sintetizado à luz de um duplo principio fundamental:
1) a comunhão eclesial e 2) a exigência da funcionalidade pastoral. Na luz destes princípios podemos entender os 542 cânones que compõem este livro.
A primeira noção que se encontra na base do Povo de Deus é a dos “fiéis católicos”. O Código a exprime com a palavra “christifideles”: fiéis cristãos. Vêm apresentados como aqueles que, incorporados em Cristo mediante o Batismo, são constituídos povo de Deus e, em consequência, participantes da missão sacerdotal, profética e régia de Cristo; assim são chamados a exercer a missão que Deus confiou à sua Igreja neste mundo. Alguém está em plena comunhão com a Igreja Católica quando está integrado em Cristo por mistério do tríplice vínculo: da profissão da mesma fé, dos sacramentos e do governo eclesiástico (cânones 204-205).
O Batismo, recebido na Igreja Católica, está na base desta nova situação. Contudo, o Código alarga também para os catecúmenos a mesma noção de fiéis. Eles já estão, de um modo particular, ligados à Igreja. Por isso já são por ela tidos como filhos, assumidos debaixo de seu amor e de seus cuidados (Cânon 206).
Antes de entrar na determinação das normas particulares, o Código distingue os fiéis em ministros sacros, que chama de clérigos, e os demais, que são os leigos. Outra realidade que compreende tanto clérigos como leigos é constituída pelos que professam os conselhos evangélicos. Trata-se de uma situação especial na Igreja, que não pertence à estrutura hierárquica, mas à sua vida e santidade: são as pessoas consagradas (cânon 207).
Os cânones 208 a 223 estabelecem a Carta dos direitos e deveres dos fiéis. Inicialmente se previa, ao lado do Código, a publicação de uma “Lei fundamental da Igreja”. Seria uma espécie de “Constituição da Igreja”, à semelhança das Constituições que caracterizam os Estados modernos, chamados, por isso, constitucionais. Fez-se, neste sentido, amplo estudo e se elaborou um anteprojeto, que foi enviado, para consulta, a todos os Bispos do mundo. Após muitas discussões, em 1980 ficou decidido que não se publicaria nenhuma “Lei Fundamental”, mas que as suas normas seriam incorporadas ao Código de Direito Canônico. Esta é a origem dos dezesseis cânones sobre os direitos e deveres fundamentais comuns a todos os fiéis.
A noção básica é a igualdade. Resulta do próprio desenvolvimento da noção do Povo de Deus e da condição batismal, tão característico do Concílio Vaticano II. O cânon 208 traduz a doutrina conciliar, estabelecendo que entre todos os fiéis existe uma verdadeira igualdade na dignidade e no agir; e que, por meio desta igualdade, todos cooperam na edificação do Corpo de Cristo, de acordo com a condição e as tarefas de cada um. Proclama-se, em outras palavras, uma igual dignidade, liberdade e responsabilidade de todos os fiéis.
Daí fluem os demais “direitos fundamentais do fiel”. Trata-se, pois, de um dos elementos mais importantes do atual Direito Canônico. Quanto aos demais direitos e deveres, que derivam deste princípio fundamental, basta enunciá-los brevemente: Comunhão com os Pastores da Igreja, de modo especial com a Igreja particular ou diocese; levar uma vida santa e colaborar no crescimento e santificação da Igreja; colaborar na ação missionária da Igreja; relacionar-se com os próprios pastores: obedecer-lhes e poder manifestar-lhes as próprias necessidades, desejos e pensamentos acerca da situação da Igreja; participar nos bens espirituais da Igreja, tais como a Palavra de Deus e os sacramentos; participar no culto, de acordo com o próprio rito e viver uma espiritualidade própria; fundar livremente associações com fins caritativos ou religiosos; exercer pessoalmente algum apostolado; dedicar-se à pesquisa teológica e publicar os resultados da mesma; escolher livremente o próprio estado de vida; reivindicar os próprios direitos e ser julgado de acordo com as normas do processo, e não ser punido a não ser de acordo com a lei; colaborar na manutenção material da Igreja, promover a Justiça e socorrer os pobres; ter presente, no exercício dos próprios direitos, o bem comum da Igreja e os direitos dos outros.
A posição do leigo na Igreja (cc. 224-231 ler)
O Código de Direito Canônico de 1983 procura dar um especial realce à posição dos leigos na Igreja.
Depois de declarar a igualdade fundamental de todos os fiéis, o Código passa à consideração dos leigos. Além da importância estatístico-sociológica – são indubitavelmente a larguíssima maioria da Igreja – os leigos se caracterizam também por uma condição constitucional própria, que está na origem de sua função específica na Igreja. Situando o tema do leigo na base do Povo de Deus, o Código visa a evitar uma perspectiva prevalentemente clerical, bem como precaver-se de uma interpretação exclusivamente secularizada. Serve-se, ao invés, de uma matriz de totalidade, dentro dos dados de que a Igreja dispõe acerca do caráter laical (cânon 224).
A teologia, já antes do Concílio Vaticano II, começou a dar os primeiros passos para definir a função do leigo na Igreja dentro da visão das realidades terrestres. O Concílio debateu ulteriormente este delicado tema e concentrou na índole secular a sua característica. É a partir dali que se há de elaborar sua espiritualidade própria e sua missão específica.
No cânon 225, o Código de Direito Canônico começa fundando o ministério do leigo nos sacramentos do batismo e da crisma. Deriva dali o dever de apostolado: anunciar Cristo onde ele tem acesso. Reconhece, porém, como encargo peculiar, o dever de permear toda a realidade temporal com o espírito do Evangelho e de dar testemunho de Cristo no exercício dos deveres seculares.
Aqui está o nó da questão: a construção do mundo segundo o espírito de Cristo. O leigo não só tem o direito de empenhar-se pelo bem comum temporal, mas tem também o respectivo dever. É seu ministério específico de cristão. Para isso, a Igreja lhe reconhece e reivindica para ele a devida liberdade, uma liberdade que compete a todo o cidadão, mas uma liberdade que deve ser utilizada pelo leigo para imbuir todas as suas ações com o espírito evangélico.
O bem comum temporal se promove através da política, da cultura, do trabalho profissional do comércio, da indústria, da agricultura etc. Este é, pois, o campo específico do leigo e é neste campo que ele tem direito de fazer livremente suas opções pessoais e associativas, sem, contudo, querer propor sua própria linha como sendo a posição da própria Igreja (Cânon 227).
A ausência da atuação do ministério específico dos leigos dá a impressão de uma Igreja desligada da realidade. Esta propõe os grandes princípios e faz pronunciamentos que depois não é capaz de atuar. Mas este, mormente no plano político, é o terreno específico dos leigos e não do clero. Onde o clero se pronuncia sobre assuntos que competem aos leigos, estes se omitem, escorando-se passivamente nos ombros clericais. Portanto, quando se pergunta sobre o que a Igreja faz no campo do bem comum, é preciso passar a questão aos leigos.
O ministério dos leigos radica-se no tríplice ministério de Cristo: 1) participam do caráter profético, como testemunhas de Cristo, 2) na união de sua vida cristã com a vida temporal participam da realeza de Cristo, empenhados como estão na extensão de seu reino 3) participam da santificação das coisas e das estruturas humanas, na integração da cultura na vida religiosa; participam do sacerdócio de Cristo, pela obrigação de levar uma vida santa, de consagrar o mundo pelo trabalho e, às vezes, em circunstâncias especiais, de substituir ministros sagrados. Numa palavra, o ministério dos leigos abrange a ordem espiritual, pelo dever de salvação e santificação do mundo; e a ordem temporal, para a sua restauração constante em Cristo.
Podemos notar que nesta perspectiva é ao leigo que cabe fazer a “consagração do mundo” através de sua cotidiana inserção na realidade, e de seu trabalho animado pelo espírito cristão.
O Código realça o “ministério conjugal” dos leigos. É na família que eles estão investidos de um encargo peculiar para a edificação do Povo de Deus, o ministério que é desenvolvido na Exortação Apostólica “Familiaris Consortio” de João Paulo II (Cânon 226).
Além desses ministérios, que lhe são característicos, o leigo pode ser chamado a exercer algum cargo eclesiástico, exercer a função de conselheiro ou obter alguns ministérios instituídos, como o de leitor e de acólito (cânones 228 e 230).
É óbvio que, com ministérios tão amplos e de tanta responsabilidade, na ordem espiritual e na temporal e junto aos órgãos da Igreja, o leigo tem o direito e o dever de adquirir aquela formação religiosa necessária para o exercício dos mesmos. Abrem-se, pois, as portas de todos os cursos da ciência religiosa e teológica, inclusive de nível universitário, podendo igualmente receber o mandato de ensinar as ciências sagradas. O Código insiste na responsabilidade dos leigos em adquirir uma apta formação (cânones 229 e 231).
Além dos oito cânones específicos acerca dos leigos, dizem-lhes respeito todos os cânones dos fiéis em geral e grande parte dos que veem nos demais livros do Código. O trabalho dos leigos não se exaure, pois, com estas determinações específicas. Elas são apenas as grandes linhas e a indicação específica do lugar que lhes compete a Igreja.
Exceto quando trata dos ministérios instituídos, todas as normas do Código valem, sem alguma distinção, tanto para os homens como para as mulheres. O princípio já se estabelecera ao elaborar a Carta dos Direitos e deveres dos fiéis, com a igualdade de todos. Não há discriminação de espécie alguma, com execução do sacramento da Ordem reservado aos homens, segundo toda a Tradição e o próprio gesto de Cristo. Deve-se, inclusive, destacar o papel da mulher, ao longo da História, como evangelizadora não só da própria família, mas também dos povos.
Nestes dias em que debruçamos sobre este assunto em nossa Assembleia Geral dos Bispos, sempre é bom recordar aquilo que já está estabelecido e encontrar caminhos pastorais para que se exerça ainda melhor a vocação do cristão leigo na Igreja e no mundo.

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