Qui, 12
de Setembro de 2013 13:25 / Atualizado - Qui, 12 de Setembro de 2013 13:32 por:
cnbb
Segue, na íntegra, a carta do papa Francisco,
publicada no jornal La Reppublica, no dia 11 de setembro, em resposta a
dois editoriais (7 de julho e 7 de agosto) do jornalista fundador do jornal
italiano, Eugenio Scalfari, sobre questões relacionadas à fé e à vida cristã,
tendo como referência a Encíclica Lumen Fidei .
Carta do papa Francisco em resposta ao jornal La
Reppublica
Vaticano, 4 de setembro de 2013
Caríssimo Dr. Scalfari, é com viva cordialidade
que, ainda que em linhas gerais, gostaria de responder, com esta minha carta, à
que o Sr., pelas páginas [do jornal] República, escreveu-me, dia 07 de julho,
com uma série de reflexões pessoais, que posteriormente aprofundou, no mesmo
jornal, dia 07 de agosto.
Agradeço-lhe, antes de tudo, pela atenção com a
qual leu a Encíclica Lumen fidei. Ela,
na intenção de meu amado Predecessor,
Bento XVI, que a concebeu e em grande medida a redigiu, e de quem, com
gratidão, eu herdei, tem por finalidade não só confirmar na fé em Jesus Cristo
os que já se reconhecem nessa fé, mas também suscitar um diálogo sincero e
rigoroso com quem, como o Sr., se define “um não crente há muitos anos
interessado e fascinado pela pregação de Jesus de Nazaré”.
Parece-me, portanto, que seja positivo, não só para
nós pessoalmente, mas também para a sociedade em que vivemos, concentrar-nos no
diálogo a respeito de uma realidade importante como é a fé, que se refere à
pregação e à figura de Jesus. Penso que há duas circunstâncias, em particular,
que tornam hoje esse diálogo necessário e precioso.
Ele, afinal, constitui, como é sabido, um dos
principais objetivos do Concílio Vaticano II – querido por João XXIII – e do
ministério dos Papas que, cada um com sua sensibilidade e sua contribuição,
daquela ocasião até hoje caminharam no sulco traçado pelo Concílio.
A primeira circunstância – como se destaca nas
páginas iniciais da Encíclica – deriva do fato que, ao longo dos séculos da
modernidade, se tem assistido a um paradoxo: a fé cristã, cuja novidade e
incidência na vida do homem desde o início se expressou com o símbolo da luz,
foi considerada como superstição obscura, oposta à luz da razão. Assim se
chegou a um estado de incomunicação entre a Igreja e a cultura de inspiração cristã,
por um lado, e a cultura moderna de cunho iluminista, por outro. Chegou, porém,
o tempo de um diálogo aberto e sem preconceitos, que reabra as portas de um
sério e fecundo encontro. O Vaticano II inaugurou esta estação.
A segunda circunstância, para quem procura ser fiel
ao dom do seguimento de Jesus à luz da fé, deriva do fato que este diálogo não
é um acessório secundário da existência de quem crê. Ao contrário, é uma
expressão íntima e indispensável [dessa existência]. Permita-me citar, a
propósito, uma afirmação que considero muito importante da Encíclica: como a
verdade testemunhada pela fé é a verdade do amor – ali se sublinha – “é claro
que a fé não é intransigente, mas cresce na convivência que respeita o outro.
Quem crê não é arrogante; ao contrário, a verdade o faz humilde, sabendo que
mais do que nós a possuirmos, é ela que nos circunda e possui. Longe de
enrijecer-nos, a segurançaa da fé nos põe a caminho e torna possível o
testemunho e o diálogo com todos” (n. 34). É este o espírito que anima as
palavras que escrevo.
A fé, para mim, nasce do encontro com Jesus. Um
encontro pessoal, que tocou meu coração e deu uma nova direção e um novo
sentido à minha existência. Mas, ao mesmo tempo, um encontro tornado possível
pela comunidade de fé na qual eu vivi e graças à qual encontrei o acesso à
inteligência da Sagrada Escritura, à vida nova que como fluxo de água jorrando
de Jesus através dos Sacramentos, à fraternidade para com todos e a serviço dos
pobres, verdadeira imagens do Senhor. Sem a Igreja, - creia-me – não teria
podido encontrar Jesus, apesar de estar ciente de que este dom imenso que é a
fé está guardado nos vasos da frágil argila de nossa humanidade.
É precisamente a partir daqui, desta experiência
pessoal de fé vivida na Igreja, que me sinto à vontade para escutar suas
questões e para procurar, junto com o Sr., os caminhos ao longo dos quais
poderemos, talvez, começar a fazer juntos um percurso.
Perdoe-me se não sigo passo a passo a argumentação
que o Sr. Propôs no editorial de 7 de julho. Parece-me mais frutuoso – ou me é
mais congenial – ir, de certo modo, ao coração de suas considerações. Também
não entro na modalidade expositiva seguida pela Encíclica, na qual o Sr. sente
a falta de uma seção especificamente dedicada à experiência histórica de Jesus
de Nazaré.
Observo apenas, para começar, que uma análise desse
tipo não é secundária. Trata-se, de fato, seguindo a própria lógica que segue o
desenvolvimento da Encíclica, de centrar a atenção sobre o significado do que
Jesus disse e fez, e, assim, em última instância, sobre o que Jesus foi e é por
nós. De fato, as cartas de Paulo e o Evangelho de João, aos quais se faz
particular referência na Encíclica, foram construídos sobre o sólido fundamento
do ministério messiânico de Jesus de Nazaré, cujo cume resolutivo é a páscoa da
morte e da ressurreição.
É necessário confrontar-se com Jesus, eu diria, na
concretude e na dureza do seu acontecimento, assim como é narrado sobretudo no
mais antigo dos Evangelhos, que é o de Marcos. Constata-se, então, que o
“escândalo” que a palavra e a praxe de Jesus provocam ao seu redor derivam de
sua extraordinária “autoridade”: uma palavra atestada desde o Evangelho de
Marcos, mas que não é fácil de traduzir para o italiano. A palavra grega é
“exousia”, que literalmente se refere ao que “provém do ser” que se é. Não se
trata de algo exterior ou forçado, mas que emana de dentro e que se impõe por
si. Jesus, efetivamente, atinge, surpreene, inova, como ele mesmo diz, a partir
de sua relação com Deus, a quem chama familiarmente Abbá, que lhe entrega esta
“autoridade” para que ele a exerça a favor dos homens.
Assim Jesus prega “como quem tem autoridade”, cura,
chama os discípulos a segui-lo, perdoa... todas elas, coisas que no Antigo
Testamento são próprias de Deus esomente dele. A pergunta que retorna mais de
uma vez no Evangelho de Marcos: “Quem é este que...?”, e que se refere à
identidade de Jesus, brota da constatação de uma autoridade diferente da do
mundo, uma autoridade cuja finalidade não é exercitar um poder sobre os outros,
mas servi-lhes, dar-lhes liberdade e plenitude de vida. E isto até o ponto de
por em jogo a própria vida, experimentar a incompreensão, a traição, a recusa,
ser condenado à morte, até o estado de abandono na cruz. Mas Jesus permanece
fiel a Deus, até o fim.
É então – como exclama o centurião romano aos pés
da cruz, no Evangelho de Marcos – que Jesus se mostra, paradoxalmente, como o
Filho de Deus! Filho de um Deus que e amor e que quer, com todo seu ser, que o
homem, cada homem, se descubra e viva também como seu verdadeiro filho. Este,
pela fé cristã, recebe a certeza de que Jesus ressuscitou: não para triunfar
sobre os quem lhe refutou, mas para atestar que o amor de Deus é mais forte que
a morte, o perdão de Deus é mais forte que todo pecado, e que vale a pena
gastar a própria vida, até o fim, para testemunhar este imenso dom.
A fé cristã crê isto: que Jesus é o filho de Deus
vindo para dar a sua vida para abrir a todos o caminho do amor. Por isso, tem
razão o egrégio Dr. Scalfari, quando vê na encarnação do Filho de Deus o
caminho da salvação. Já Tertuliano escrevia “caro cardo salutis”, a carne [de
Cristo] é o cardo da salvação. Porque a encarnação – o fato que o Filho de Deus
tenha vindo na nossa carne e tenha condiviso alegrias e dores, vitórias e
derrotas da nossa existência, até o grito na cruz, vivendo cada coisa no amor e
na fidelidade ao Abbá – testemunha o incrível amor que Deus tem por cada homem,
o valor inestimável que lhe atribui. Cada um de nós, por isto, é chamado a
fazer seu o olhar e a escolha de amor de Jesus, a entrar no seu modo de ser, de
pensar e de agir. Esta é a fé, com todas as expressões que são descritas com
precisão na Encíclica.
No mesmo editorial de 07 de julho, o Sr. me
pergunta ainda como compreender a originalidade da fé cristã enquanto essa tem
seu foco precisamente sobre a encarnação do Filho de Deus, em relação a outros
credos que, diferentemente, gravitam em torno da transcendência absoluta de
Deus.
Eu diria que a originalidade está precisamente no
fato que a fé nos faz participar, em Jesus, da relação que Ele tem com Deus que
é Abbá e, a esta luz, no relacionamento que Ele tem com todos os outros homens,
inclusive os inimigos, no sinal do amor. Em outros termos, a filiação de Jesus,
como a apresenta a fé cristã, não é revelada para marcar uma separação
insuperável entre Jesus e todos os outros: mas para dizer-nos que, nele, todos
somos chamados a ser filhos do único Pai e irmãos entre nós. A singularidade de
Jesus é para a comunicação, não para a exclusão.
Disto segue também – e não é pouca coisa – a
distinção entre a esfera religiosa e a esfera política que é afirmada no “dar a
Deus o que é de Deus e a César o que é de César”, afirmada com clareza por
Jesus e sobre a qual, com fadiga, se construiu a história do Ocidente. A
Igreja, de fato, é chamada a semear o fermento e o sal do Evangelho, o amor e a
misericórdia de Deus que atingem todos os homens, apontando a meta ultraterrena
e definitiva do nosso destino, enquanto à sociedade civil e política toca a árdua
tarefa de articular e encarnar na justiça e na solidariedade, no direito e na
paz, uma vida cada vez mais humana. Para quem vive a fé cristã, isto não
significa fuga do mundo ou procura de qualquer tipo de hegemonia, mas serviço
ao homem, ao homem todo e a todos os homens, a partir das periferias da
história e tendo desperto o sentido da esperança que impulsiona a trabalhar
pelo bem apesar de tudo e olhando sempre além.
O Senhor me pergunta ainda, na conclusão de seu
primeiro artigo, o que dizer aos irmãos judeus a respeito da promessa feita por
Deus a eles: esvaziou-se completamente? Este é – acredite-me – um
questionamento que nos interpela radicalmente, como cristãos, porque, com a
ajuda de Deus, sobretudo a partir do Concílio Vaticano II, temos redescoberto
que o povo judeu é ainda, para nós, a raiz santa da qual germinou Jesus. Eu
também, na amizade que cultivei ao longo de todos esses anos com irmãos judeus,
na Argentina, muitas vezes na oração interroguei a Deus, de modo particular
quando recordava a terrível experiência da Shoah. O que lhe posso dizer, com o
apóstolo Paulo, e que nunca se acabou a fidelidade de Deus à aliança feita com
Israel e que, através das terríveis provas destes séculos, os judeus
conservaram a sua fé em Deus. E por isto, nunca seremos suficientemente gratos
a eles, como Igreja, mas também como humanidade. Esses, perseverando na fé no
Deus da aliança, recordam todos, também nós cristãos, o fato que estamos sempre
na espera do retorno do Senhor, como peregrinos, e, portanto, devemos estar
abertos para ele e nunca apoiar-nos no que já tenhamos atingido.
Agora trato das três questões que o Sr. me propôs
no artigo de 07 de agosto. Me parece que, nas duas primeiras, o que lhe
interessa é entender o comportamento da Igreja com relação aos que não
partilham a fé em Jesus. Antes de tudo, me pergunta se o Deus dos cristãos
perdoa quem não crê e não busca a fé. Antecipando que – e é o fundamental – a
misericórdia de Deus não tem limites se se volta a ele de coração sincero e
contrito, a questão para quem não crê em Deus está em obedecer à própria
consciência. O pecado, também para quem não tem fé, existe quando se vai contra
a consciência. Escutar e obedecer a ela significa, de fato, decidir-se diante
do que é percebido como bem ou como mal. E sobre essa decisão se joga a bondade
ou a maldade do nosso agir.
Em segundo lugar, me pergunta se o pensamento
segundo o qual não existe nenhum absoluto e, consequentemente, nenhuma verdade
absoluta, mas somente uma série de verdades relativas e subjetivas, seja um
erro ou um pecado. Para começar, eu não falaria, nem mesmo para quem crê, de
verdade “absoluta”, no sentido que absoluto é o que é desligado, o que é
privado de qualquer relação. Ora, a verdade, segundo a fé cristã, é o amor de
Deus por nós em Jesus Cristo. Portanto, a verdade é uma relação! Tanto é
verdade, que cada um de nós a compreende e a exprime a partir de si: da sua
história e cultura, da situação em que vive, etc. Isto não significa que a
verdade seja variável e subjetiva. Ao contrário. Mas significa que ela se dá a
nós sempre e só como um caminho e uma vida. Jesus não disse “Eu sou o caminho,
a verdade, a vida”? Em outros termos, a verdade, sendo definitivamente uma com
o amor, requer a humildade e a abertura para ser buscada, acolhida e expressa.
Portanto, é necessário um bom entendimento a respeito dos termos e, talvez,
sair da estreiteza de uma contraposição... absoluta, impostar novamente em
profundidade a questão. Penso que isto seja absolutamente necessário para
entabular o diálogo sereno e construtivo que eu auspiciava no início desse meu
dizer.
Na última pergunta, o Sr. me pergunta se, com o
desaparecimento do homem sobre a terra, desaparecerá também o pensamento capaz
de pensar Deus. Certo, a grandeza do homem está no poder pensar Deus. E no
poder viver uma relação consciente e responsável com Ele. Mas a relação existe
entre duas realidades. Deus – este é o meu pensamento e esta é minha
experiência, mas quantos, ontem e hoje, a condividem! – não é uma ideia, ainda
que elevadíssima, fruto do pensamento do homem. Deus é realidade com “R”
maiúsculo. Jesus no-lo revela – e vive a relação com Ele – como um Pai de
bondade e misericórdia infinita. Deus não depende, portanto, do nosso
pensamento. De resto, também quando viesse a acabar a vida do homem sobre a
terra – e para a fé cristã, em todo caso, este mundo assim como o conhecemos é
destinado a acabar –, o homem não cessará de existir e, de um modo que não
sabemos, também com ele o universo criado. A Escritura fala de “novos céus e nova
terra” e afirma que, no fim, no onde e no quando que estão além de nós, mas
para os quais, na fé, tendemos com desejo e esperança, Deus será “tudo em
todos”.
Egrégio Dr. Scalfari, concluo assim estas minhas
reflexões, suscitadas pelo que o Sr. quis me comunicar e perguntar. Acolha como
resposta provisória mas sincera e confiante ao convite que lhe dirigi de fazer
um percurso de caminho juntos. A Igreja, creia-me, apesar de todas as
lentidões, infidelidades, erros e pecados que pode ter cometido e pode ainda
cometer nos que a compõem, não tem outro sentido e fim a não ser o de viver e
testemunhar Jesus: Ele que foi enviado pelo Abbá “a levar aos pobres o alegre
anúncio, a proclamar aos prisioneiros a libertação e aos cegos a vista, e por
em liberdade os oprimidos, a proclamar o ano da graça do Senhor” (Lc 4,18-19).
Com proximidade fraterna,
Francisco
Francisco
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