fonte: CNBB - DOMINGO, 12 JULHO 2015 13:39
O II Encontro Mundial dos Movimentos
Populares, ocorrido em Santa Cruz de La Sierra, Bolívia, de 7 a 9 de julho,
reuniu cerca de 1500 representantes de movimentos sociais que, durante os
três dias, refletiram sobre o tema: "Mãe Terra, Moradia, Trabalho -
Integração dos Povos". A abertura do Encontro foi conduzida pelo
presidente do Pontifício Conselho Justiça e Paz, cardeal Peter Turkson. O bispo
de Ipameri (GO) e presidente da Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da
Caridade, da Justiça e da Paz da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB), dom Guilherme Werlang, participou do painel: "O teto, a cidade e
os movimentos populares". No dia 9, o papa Francisco proferiu seu maior
discurso desde o início da viagem pela América Latina. Leia, abaixo, a íntegra
do pronunciamento do papa:
(5-13 DE JULHO DE 2015)
PARTICIPAÇÃO AO II ENCONTRO MUNDIAL DOS MOVIMENTOS POPULARES
DISCURSO DO SANTO PADRE
Expo Feira de Santa Cruz de la Sierra (Bolívia)
Quinta-feira, 9 de Julho de 2015
Quinta-feira, 9 de Julho de 2015
Irmãos e irmãs, boa
tarde!
Há alguns meses, reunimo-nos em Roma e
não esqueço aquele nosso primeiro encontro. Durante este tempo, trouxe-vos no
meu coração e nas minhas orações. E alegra-me vê-vos de novo aqui, debatendo os
melhores caminhos para superar as graves situações de injustiça que padecem os
excluídos em todo o mundo. Obrigado Senhor Presidente Evo Morales, por
sustentar tão decididamente este Encontro.
Então, em Roma, senti algo muito belo:
fraternidade, paixão, entrega, sede de justiça. Hoje, em Santa Cruz de la
Sierra, volto a sentir o mesmo. Obrigado! Soube também, pelo Pontifício
Conselho «Justiça e Paz» presidido pelo Cardeal Turkson, que são muitos na
Igreja aqueles que se sentem mais próximos dos movimentos populares. Muito me
alegro por isso! Ver a Igreja com as portas abertas a todos vós, que se
envolve, acompanha e consegue sistematizar em cada diocese, em cada comissão
«Justiça e Paz», uma colaboração real, permanente e comprometida com os
movimentos populares. Convido-vos a todos, bispos, sacerdotes e leigos,
juntamente com as organizações sociais das periferias urbanas e rurais a
aprofundar este encontro.
Deus permitiu que nos voltássemos a ver
hoje. A Bíblia lembra-nos que Deus escuta o clamor do seu povo e também eu
quero voltar a unir a minha voz à vossa: os famosos três “T”: terra, teto e
trabalho para todos os nossos irmãos e irmãs. Disse-o e repito: são direitos
sagrados. Vale a pena, vale a pena lutar por eles. Que o clamor dos excluídos
seja escutado na América Latina e em toda a terra.
1. Em primeiro
lugar, comecemos por reconhecer que precisamos duma mudança. Quero
esclarecer, para que não haja mal-entendidos, que falo dos problemas comuns de
todos os latino-americanos e, em geral, também de toda a humanidade. Problemas,
que têm uma matriz global e que atualmente nenhum Estado pode resolver por si
mesmo. Feito este esclarecimento, proponho que nos coloquemos estas perguntas:
- Reconhecemos nós, de verdade, que as
coisas não andam bem num mundo onde há tantos camponeses sem terra, tantas
famílias sem tecto, tantos trabalhadores sem direitos, tantas pessoas feridas
na sua dignidade?
- Reconhecemos nós que as coisas não
andam bem, quando explodem tantas guerras sem sentido e a violência fratricida
se apodera até dos nossos bairros? Reconhecemos nós que as coisas não andam
bem, quando o solo, a água, o ar e todos os seres da criação estão sob ameaça
constante?
Então, se reconhecemos isto, digamo-lo
sem medo: Precisamos e queremos uma mudança.
Nas vossas cartas e nos nossos
encontros, relataram-me as múltiplas exclusões e injustiças que sofrem em cada
atividade laboral, em cada bairro, em cada território. São tantas e tão
variadas como muitas e diferentes são as formas próprias de as enfrentar. Mas
há um elo invisível que une cada uma das exclusões. Não se encontram isoladas,
estão unidas, por um fio invisível. Conseguimos nós reconhecê-lo? É que não se
trata de questões isoladas. Pergunto-me se somos capazes de reconhecer que
estas realidades destrutivas correspondem a um sistema que se tornou global.
Reconhecemos nós que este sistema impôs a lógica do lucro a todo o custo, sem
pensar na exclusão social nem na destruição da natureza?
Se isso é assim – insisto – digamo-lo
sem medo: Queremos uma mudança, uma mudança real, uma mudança de estruturas.
Este sistema é insuportável: não o suportam os camponeses, não o suportam os
trabalhadores, não o suportam as comunidades, não o suportam os povos.... E nem
sequer o suporta a Terra, a irmã Mãe Terra, como dizia São Francisco.
Queremos uma mudança nas nossas vidas,
nos nossos bairros, no vilarejo, na nossa realidade mais próxima; mas uma
mudança que toque também o mundo inteiro, porque hoje a interdependência global
requer respostas globais para os problemas locais. A globalização da esperança,
que nasce dos povos e cresce entre os pobres, deve substituir esta globalização
da exclusão e da indiferença.
Hoje quero refletir convosco sobre a
mudança que queremos e precisamos. Como sabeis, recentemente escrevi sobre os
problemas da mudança climática. Mas, desta vez, quero falar duma mudança noutro
sentido. Uma mudança positiva, uma mudança que nos faça bem, uma mudança –
poderíamos dizer – redentora. Porque é dela que precisamos. Sei que buscais uma
mudança e não apenas vós: nos diferentes encontros, nas várias viagens,
verifiquei que há uma expectativa, uma busca forte, um anseio de mudança em
todos os povos do mundo. Mesmo dentro da minoria cada vez mais reduzida que
pensa sair beneficiada deste sistema, reina a insatisfação e sobretudo a
tristeza. Muitos esperam uma mudança que os liberte desta tristeza
individualista que escraviza.
O tempo, irmãos e irmãs,
o tempo parece exaurir-se; já não nos contentamos com lutar entre nós, mas
chegamos até a assanhar-nos contra a nossa casa. Hoje, a comunidade científica
aceita aquilo que os pobres já há muito denunciam: estão a produzir-se danos
talvez irreversíveis no ecossistema. Está-se a castigar a terra, os povos e as
pessoas de forma quase selvagem. E por trás de tanto sofrimento, tanta morte e
destruição, sente-se o cheiro daquilo que Basílio de Cesareia – um dos
primeiros teólogos da Igreja - chamava «o esterco do diabo»: reina a
ambição desenfreada de dinheiro. É este o esterco do diabo. O
serviço ao bem comum fica em segundo plano. Quando o capital se torna um ídolo
e dirige as opções dos seres humanos, quando a avidez do dinheiro domina todo o
sistema socioeconômico, arruína a sociedade, condena o homem, transforma-o em
escravo, destrói a fraternidade inter-humana, faz lutar povo contra povo e até,
como vemos, põe em risco esta nossa casa comum, a irmã e mãe terra.
Não quero alongar-me na descrição dos
efeitos malignos desta ditadura subtil: vós conhecei-los! Mas também não basta
assinalar as causas estruturais do drama social e ambiental contemporâneo.
Sofremos de um certo excesso de diagnóstico, que às vezes nos leva a um
pessimismo charlatão ou a rejubilar com o negativo. Ao ver a crônica negra de
cada dia, pensamos que não haja nada que se possa fazer para além de cuidar de
nós mesmos e do pequeno círculo da família e dos amigos.
Que posso fazer eu, recolhedor de
papelão, catador de lixo, limpador, reciclador, frente a tantos problemas, se
mal ganho para comer? Que posso fazer eu, artesão, vendedor ambulante,
carregador, trabalhador irregular, se não tenho sequer direitos laborais? Que
posso fazer eu, camponesa, indígena, pescador que dificilmente consigo resistir
à propagação das grandes corporações? Que posso fazer eu, a partir da minha
comunidade, do meu barraco, da minha povoação, da minha favela, quando sou
diariamente discriminado e marginalizado? Que pode fazer aquele estudante,
aquele jovem, aquele militante, aquele missionário que atravessa as favelas e
os paradeiros com o coração cheio de sonhos, mas quase sem nenhuma solução para
os seus problemas? Podem fazer muito. Vós, os mais humildes, os explorados, os
pobres e excluídos, podeis e fazeis muito. Atrevo-me a dizer que o futuro da
humanidade está, em grande medida, nas vossas mãos, na vossa capacidade de vos
organizar e promover alternativas criativas na busca diária dos três “T” –
entendido? - (trabalho, teto, terra), e também na vossa participação como
protagonistas nos grandes processos de mudança, mudanças nacionais, mudanças
regionais e mudanças mundiais. Não se acanhem!
2. Segundo. Vós
sois semeadores de mudança. Aqui, na Bolívia, ouvi uma frase de que gosto
muito: «processo de mudança». A mudança concebida, não como algo que um dia
chegará porque se impôs esta ou aquela opção política ou porque se estabeleceu
esta ou aquela estrutura social. Sabemos, amargamente, que uma mudança de
estruturas, que não seja acompanhada por uma conversão sincera das atitudes e
do coração, acaba a longo ou curto prazo por burocratizar-se, corromper-se e
sucumbir. É preciso mudar o coração. Por isso gosto tanto da imagem do
processo, onde a paixão por semear, por regar serenamente o que outros verão
florescer, substitui a ansiedade de ocupar todos os espaços de poder
disponíveis e de ver resultados imediatos. A opção é a de gerar processos e não
a de ocupar espaços. Cada um de nós é apenas uma parte de um todo complexo e
diversificado interagindo no tempo: povos que lutam por uma afirmação, por um
destino, por viver com dignidade, por «viver bem», dignamente, nesse sentido.
Vós, a partir dos
movimentos populares, assumis as tarefas comuns motivados pelo amor fraterno,
que se rebela contra a injustiça social. Quando olhamos o rosto dos que sofrem,
o rosto do camponês ameaçado, do trabalhador excluído, do indígena oprimido, da
família sem teto, do imigrante perseguido, do jovem desempregado, da criança
explorada, da mãe que perdeu o seu filho num tiroteio porque o bairro foi
tomado pelo narcotráfico, do pai que perdeu a sua filha porque foi sujeita à
escravidão; quando recordamos estes «rostos e estes nomes»
estremecem-nos as entranhas diante de tanto sofrimento e comovemo-nos, todos
nos comovemos…. Porque «vimos e ouvimos», não a fria estatística, mas as
feridas da humanidade dolorida, as nossas feridas, a nossa carne. Isto é muito
diferente da teorização abstrata ou da indignação elegante. Isto comove-nos,
move-nos e procuramos o outro para nos movermos juntos. Esta emoção feita acção
comunitária é incompreensível apenas com a razão: tem um plus de
sentido que só os povos entendem e que confere a sua mística particular aos
verdadeiros movimentos populares.
Vós viveis, cada dia, imersos na crueza
da tormenta humana. Falastes-me das vossas causas, partilhastes comigo as
vossas lutas, já desde Buenos Aires. E agradeço-vos. Queridos irmãos, muitas
vezes trabalhais no insignificante, no que aparece ao vosso alcance, na
realidade injusta que vos foi imposta e a que não vos resignais opondo uma
resistência ativa ao sistema idólatra que exclui, degrada e mata. Vi-vos
trabalhar incansavelmente pela terra e a agricultura camponesa, pelos vossos
territórios e comunidades, pela dignificação da economia popular, pela
integração urbana das vossas favelas e agrupamentos, pela auto-construção de
moradias e o desenvolvimento das infra-estruturas do bairro e em muitas
atividades comunitárias que tendem à reafirmação de algo tão elementar e
inegavelmente necessário como o direito aos “3 T”: terra, teto e trabalho.
Este apego ao bairro, à terra, à
profissão, à corporação, este reconhecer-se no rosto do outro, esta proximidade
no dia-a-dia, com as suas misérias, porque elas existem, temo-las nós mesmos, e
os seus heroísmos quotidianos, é o que permite realizar o mandamento do amor,
não a partir de ideias ou conceitos, mas a partir do genuíno encontro entre
pessoas, precisamos instaurar esta cultura do encontro, porque não se amam os
conceitos nem as ideias, ninguém ama um conceito, ninguém ama uma ideia;
amam-se as pessoas. A entrega, a verdadeira entrega nasce do amor pelos homens
e mulheres, crianças e idosos, vilarejos e comunidades... Rostos e nomes que
enchem o coração. A partir destas sementes de esperança semeadas pacientemente
nas periferias esquecidas do planeta, destes rebentos de ternura que lutam por
subsistir na escuridão da exclusão, crescerão grandes árvores, surgirão bosques
densos de esperança para oxigenar este mundo.
Vejo, com alegria, que trabalhais no
que aparece ao vosso alcance, cuidando dos rebentos; mas, ao mesmo tempo, com
uma perspectiva mais ampla, protegendo o arvoredo. Trabalhais numa perspectiva
que não só aborda a realidade setorial que cada um de vós representa e na qual
felizmente está enraizada, mas procurais também resolver, na sua raiz, os
problemas gerais de pobreza, desigualdade e exclusão.
Felicito-vos por isso. É imprescindível
que, a par da reivindicação dos seus legítimos direitos, os povos e as
organizações sociais construam uma alternativa humana à globalização exclusiva.
Vós sois semeadores de mudança. Que Deus vos dê coragem, vos dê alegria, vos dê
perseverança e paixão para continuar a semear. Podeis ter a certeza de que,
mais cedo ou mais tarde, vamos ver os frutos. Peço aos dirigentes: sede
criativos e nunca percais o apego às coisas próximas, porque o pai da mentira
sabe usurpar palavras nobres, promover modas intelectuais e adotar posições
ideológicas, mas se construirdes sobre bases sólidas, sobre as necessidades
reais e a experiência viva dos vossos irmãos, dos camponeses e indígenas, dos
trabalhadores excluídos e famílias marginalizadas, de certeza não vos
equivocareis.
A Igreja não pode nem deve ficar alheia
a este processo no anúncio do Evangelho. Muitos sacerdotes e agentes pastorais
realizam uma tarefa imensa acompanhando e promovendo os excluídos de todo o
mundo, ao lado de cooperativas, dando impulso a empreendimentos, construindo
casas, trabalhando abnegadamente nas áreas da saúde, desporto e educação. Estou
convencido de que a cooperação amistosa com os movimentos populares pode
robustecer estes esforços e fortalecer os processos de mudança.
No coração, tenhamos sempre a Virgem
Maria, uma jovem humilde duma pequena aldeia perdida na periferia dum grande
império, uma mãe sem teto que soube transformar um curral de animais na casa de
Jesus com uns pobres paninhos e uma montanha de ternura. Maria é sinal de
esperança para os povos que sofrem dores de parto até que brote a justiça. Rezo
à Virgem Maria, tão venerada pelo povo boliviano, para que permita que este
nosso Encontro seja fermento de mudança.
3. Por último, gostaria que
refletíssemos, juntos, sobre algumas tarefas importantes neste momento
histórico, pois queremos uma mudança positiva em benefício de todos os nossos
irmãos e irmãs. Disto estamos certos! Queremos uma mudança que se enriqueça com
o trabalho conjunto de governos, movimentos populares e outras forças sociais.
Sabemos isto também! Mas não é tão fácil definir o conteúdo da mudança, ou
seja, o programa social que reflita este projeto de fraternidade e justiça que
esperamos, não é fácil defini-lo. Neste sentido, não esperem uma receita deste
Papa. Nem o Papa nem a Igreja têm o monopólio da interpretação da realidade
social e da proposta de soluções para problemas contemporâneos. Atrever-me-ia a
dizer que não existe uma receita. A história é construída pelas gerações que se
vão sucedendo no horizonte de povos que avançam individuando o próprio caminho
e respeitando os valores que Deus colocou no coração.
Gostaria, no entanto, de vos propor
três grandes tarefas que requerem a decisiva contribuição do conjunto dos
movimentos populares:
3.1 A
primeira tarefa é pôr a economia ao serviço dos povos.
Os seres humanos e a natureza não devem
estar ao serviço do dinheiro. Digamos NÃO a uma economia de exclusão e
desigualdade, onde o dinheiro reina em vez de servir. Esta economia mata. Esta
economia exclui. Esta economia destrói a Mãe Terra.
A economia não
deveria ser um mecanismo de acumulação, mas a condigna administração da casa
comum. Isto implica cuidar zelosamente da casa e distribuir adequadamente os
bens entre todos. A sua finalidade não é unicamente garantir o alimento ou um «decoroso
sustento». Não é sequer, embora fosse já um grande passo, garantir o acesso
aos “3 T” pelos quais combateis. Uma economia verdadeiramente comunitária –
poder-se-ia dizer, uma economia de inspiração cristã – deve garantir aos povos
dignidade, «prosperidade e civilização em seus múltiplos aspectos».[1] Esta
última frase foi pronunciada pelo Papa João XXIII há cinquenta anos. Jesus fala
no Evangelho que aquele que espontaneamente dê um copo-d’água a quem tem sede,
isso lhe será tido em conta no Reino dos Céus. Isto envolve os “3 T” mas também
acesso à educação, à saúde, à inovação, às manifestações artísticas e
culturais, à comunicação, ao desporto e à recreação. Uma economia justa deve
criar as condições para que cada pessoa possa gozar duma infância sem
privações, desenvolver os seus talentos durante a juventude, trabalhar com
plenos direitos durante os anos de atividade e ter acesso a uma digna
aposentadoriao na velhice. É uma economia onde o ser humano, em harmonia com a
natureza, estrutura todo o sistema de produção e distribuição de tal modo que
as capacidades e necessidades de cada um encontrem um apoio adequado no ser
social. Vós – e outros povos também – resumis este anseio duma maneira simples
e bela: «viver bem», que não é a mesma coisa que «aproveitar».
Esta economia é não
apenas desejável e necessária, mas também é possível. Não é uma utopia, nem uma
fantasia. É uma perspectiva extremamente realista. Podemos consegui-la. Os
recursos disponíveis no mundo, fruto do trabalho intergeneracional dos povos e
dos dons da criação, são mais que suficientes para o desenvolvimento integral
de «todos os homens e do homem todo».[2] Mas
o problema é outro. Existe um sistema com outros objetivos. Um sistema que,
além de acelerar irresponsavelmente os ritmos da produção, além de implementar
métodos na indústria e na agricultura que sacrificam a Mãe Terra na ara da
«produtividade», continua a negar a milhares de milhões de irmãos os mais
elementares direitos econômicos, sociais e culturais. Este sistema atenta
contra o projeto de Jesus, contra a Boa Nova que Jesus trouxe.
A justa distribuição dos frutos da
terra e do trabalho humano não é mera filantropia. É um dever moral. Para os
cristãos, o encargo é ainda mais forte: é um mandamento. Trata-se de devolver
aos pobres e às pessoas o que lhes pertence. O destino universal dos bens não é
um adorno retórico da doutrina social da Igreja. É uma realidade anterior à
propriedade privada. A propriedade, sobretudo quando afeta os recursos
naturais, deve estar sempre em função das necessidades das pessoas. E estas
necessidades não se limitam ao consumo. Não basta deixar cair algumas gotas,
quando os pobres agitam este copo que, por si só, nunca derrama. Os planos de
assistência que acodem a certas emergências deveriam ser pensados apenas como
respostas transitórias, conjunturais. Nunca poderiam substituir a verdadeira
inclusão: a inclusão que dá o trabalho digno, livre, criativo, participativo e
solidário.
E neste caminho, os movimentos
populares têm um papel essencial, não apenas exigindo e reclamando, mas
fundamentalmente criando. Vós sois poetas sociais: criadores de trabalho,
construtores de casas, produtores de alimentos, sobretudo para os descartados pelo
mercado global.
Conheci de perto várias experiências,
onde os trabalhadores, unidos em cooperativas e outras formas de organização
comunitária, conseguiram criar trabalho onde só havia sobras da economia
idólatra. E vi que alguns estão aqui. As empresas recuperadas, as feiras
francas e as cooperativas de catadores de papelão são exemplos desta economia
popular que surge da exclusão e que pouco a pouco, com esforço e paciência,
adota formas solidárias que a dignificam. E quão diferente é isto do fato de os
descartados pelo mercado formal serem explorados como escravos!
Os governos que assumem como própria a
tarefa de colocar a economia ao serviço das pessoas devem promover o
fortalecimento, melhoria, coordenação e expansão destas formas de economia
popular e produção comunitária. Isto implica melhorar os processos de trabalho,
prover de adequadas infra-estruturas e garantir plenos direitos aos
trabalhadores deste sector alternativo. Quando Estado e organizações sociais
assumem, juntos, a missão dos “3 T”, ativam-se os princípios de solidariedade e
subsidiariedade que permitem construir o bem comum numa democracia plena e
participativa.
3.2 A segunda
tarefa é unir os nossos povos no caminho da paz e da justiça.
Os povos do mundo
querem ser artífices do seu próprio destino. Querem caminhar em paz para a
justiça. Não querem tutelas nem interferências, onde o mais forte subordina o
mais fraco. Querem que a sua cultura, o seu idioma, os seus processos sociais e
tradições religiosas sejam respeitados. Nenhum poder efetivamente constituído
tem direito de privar os países pobres do pleno exercício da sua soberania e,
quando o fazem, vemos novas formas de colonialismo que afectam seriamente as
possibilidades de paz e justiça, porque «a paz funda-se não só no respeito pelos
direitos do homem, mas também no respeito pelo direito dos povos, sobretudo o
direito à independência».[3]
Os povos da América Latina alcançaram,
com um parto doloroso, a sua independência política e, desde então, viveram já
quase dois séculos duma história dramática e cheia de contradições procurando
conquistar uma independência plena.
Nos últimos anos, depois de tantos
mal-entendidos, muitos países latino-americanos viram crescer a fraternidade
entre os seus povos. Os governos da região juntaram seus esforços para fazer
respeitar a sua soberania, a de cada país e a da região como um todo que, de
forma muito bela como faziam os nossos antepassados, chamam a «Pátria Grande».
Peço-vos, irmãos e irmãs dos movimentos populares, que cuidem e façam crescer
esta unidade. É necessário manter a unidade contra toda a tentativa de divisão,
para que a região cresça em paz e justiça.
Apesar destes
avanços, ainda subsistem fatores que atentam contra este desenvolvimento humano
equitativo e coarctam a soberania dos países da «Pátria Grande» e doutras
latitudes do Planeta. O novo colonialismo assume variadas fisionomias. Às
vezes, é o poder anônimo do ídolo dinheiro: corporações, credores, alguns
tratados denominados «de livre comércio» e a imposição de medidas de
«austeridade» que sempre apertam o cinto dos trabalhadores e dos pobres. Os
bispos latino-americanos o denunciamos muito claramente, no documento de
Aparecida, quando se afirma que «as instituições financeiras e as empresas
transnacionais se fortalecem ao ponto de subordinar as economias locais,
sobretudo debilitando os Estados, que aparecem cada vez mais impotentes para
levar adiante projetos de desenvolvimento a serviço de suas populações».[4] Noutras
ocasiões, sob o nobre disfarce da luta contra a corrupção, o narcotráfico ou o
terrorismo – graves males dos nossos tempos que requerem uma ação internacional
coordenada – vemos que se impõem aos Estados medidas que pouco têm a ver com a
resolução de tais problemáticas e muitas vezes tornam as coisas piores.
Da mesma forma, a
concentração monopolista dos meios de comunicação social que pretende impor
padrões alienantes de consumo e certa uniformidade cultural é outra das formas
que adota o novo colonialismo. É o colonialismo ideológico. Como dizem os
bispos da África, muitas vezes pretende-se converter os países pobres em «peças
de um mecanismo, partes de uma engrenagem gigante».[5]
Temos de reconhecer que nenhum dos
graves problemas da humanidade pode ser resolvido sem a interação dos Estados e
dos povos a nível internacional. Qualquer acto de envergadura realizado numa
parte do Planeta repercute-se no todo em termos econômicos, ecológicos, sociais
e culturais. Até o crime e a violência se globalizaram. Por isso, nenhum
governo pode atuar à margem duma responsabilidade comum. Se queremos realmente
uma mudança positiva, temos de assumir humildemente a nossa interdependência,
ou seja, nossa sã interdependência. Mas interação não é sinônimo de imposição,
não é subordinação de uns em função dos interesses dos outros. O colonialismo,
novo e velho, que reduz os países pobres a meros fornecedores de
matérias-primas e mão de obra barata, gera violência, miséria, emigrações
forçadas e todos os males que vêm juntos... precisamente porque, ao pôr a
periferia em função do centro, nega-lhes o direito a um desenvolvimento
integral. E isto, irmãos, é desigualdade, e a desigualdade gera violência que
nenhum recurso policial, militar ou dos serviços secretos será capaz de deter.
Digamos assim NÃO às velhas e novas
formas de colonialismo. Digamos SIM ao encontro entre povos e culturas.
Bem-aventurados os que trabalham pela paz.
E aqui quero deter-me
num tema importante. É que alguém poderá, com direito, dizer: «Quando o Papa
fala de colonialismo, esquece-se de certas ações da Igreja». Com pesar, vo-lo
digo: Cometeram-se muitos e graves pecados contra os povos nativos da América,
em nome de Deus. Reconheceram-no os meus antecessores, afirmou-o o CELAM, o
Conselho Episcopal Latino-americano, e quero reafirmá-lo eu também. Como São
João Paulo II, peço que a Igreja – e cito o que ele disse - «se ajoelhe
diante de Deus e implore o perdão para os pecados passados e presentes dos seus
filhos».[6] E
eu quero dizer-vos, quero ser muito claro, como foi São João Paulo II: Peço
humildemente perdão, não só para as ofensas da própria Igreja, mas também
para os crimes contra os povos nativos durante a chamada conquista da América.
E junto com este pedido de perdão e para ser justos, também quero que lembremos
a milhares de sacerdotes, bispos, que fizeram oposição à lógica da espada com a
força da Cruz. Houve pecado, e pecado abundante, mas não pedimos perdão no
passado. Por isso agora pedimos perdão, e peço perdão; mas também lá, onde
houve pecado, onde abundou o pecado, superabundou a graça através destes homens
que defenderam a justiça dos povos originários.
Peço-vos também a todos, crentes e não
crentes, que se recordem de tantos bispos, sacerdotes e leigos que pregaram e
pregam a boa nova de Jesus com coragem e mansidão, respeito e em paz – falei
dos bispos, sacerdotes e leigos, mas não quero esquecer-me das freirinhas que
caminham anonimamente nos vossos bairros pobres levando uma mensagem de paz e
de bem-; que, na sua passagem por esta vida, deixaram impressionantes obras de
promoção humana e de amor, pondo-se muitas vezes ao lado dos povos indígenas ou
acompanhando os próprios movimentos populares mesmo até ao martírio. A Igreja,
os seus filhos e filhas, fazem parte da identidade dos povos na América Latina.
Identidade que alguns poderes, tanto aqui como noutros países, se empenham por
apagar, talvez porque a nossa fé é revolucionária, porque a nossa fé desafia a
tirania do ídolo dinheiro. Hoje vemos, com horror, como no Médio Oriente e
noutros lugares do mundo se persegue, tortura, assassina a muitos irmãos nossos
pela sua fé em Jesus. Isto também devemos denunciá-lo: dentro desta terceira
guerra mundial em parcelas que vivemos, há uma espécie de – forço um pouco a
expressão - genocídio em curso que deve cessar.
Aos irmãos e irmãs do movimento
indígena latino-americano, deixem-me expressar a minha mais profunda estima e
felicitá-los por procurarem a conjugação dos seus povos e culturas segundo uma
forma de convivência, a que eu gosto de chamar poliédrica, onde as partes
conservam a sua identidade construindo, juntas, uma pluralidade que não atenta
contra a unidade, mas fortalece-a. A sua procura desta interculturalidade que
conjuga a reafirmação dos direitos dos povos nativos com o respeito à
integridade territorial dos Estados enriquece-nos e fortalece-nos a todos.
3.3 E a terceira
tarefa, e talvez a mais importante que devemos assumir hoje, é defender a Mãe
Terra.
A casa comum de todos
nós está a ser saqueada, devastada, vexada impunemente. A covardia em
defendê-la é um pecado grave. Vemos, com crescente decepção, sucederem-se uma
após outra as cimeiras internacionais sem qualquer resultado importante. Existe
um claro, definitivo e inadiável imperativo ético de atuar que não está a ser
cumprido. Não se pode permitir que certos interesses – que são globais, mas não
universais – se imponham, submetendo Estados e organismos internacionais, e
continuem a destruir a criação. Os povos e os seus movimentos são chamados a
clamar, mobilizar-se, exigir – pacífica mas tenazmente – a adoção urgente de
medidas apropriadas. Peço-vos, em nome de Deus, que defendais a Mãe Terra.
Sobre este assunto, expressei-me devidamente na carta encíclica Laudato
si’, que creio que vos será entregue na conclusão.
4. Para concluir, quero dizer-lhes
novamente: O futuro da humanidade não está unicamente nas mãos dos grandes
dirigentes, das grandes potências e das elites. Está fundamentalmente nas mãos
dos povos; na sua capacidade de se organizarem e também nas suas mãos que
regem, com humildade e convicção, este processo de mudança. Estou convosco. E
cada um, repitamos a nós mesmos do fundo do coração: nenhuma família sem teto,
nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos, nenhum povo sem
soberania, nenhuma pessoa sem dignidade, nenhuma criança sem infância, nenhum
jovem sem possibilidades, nenhum idoso sem uma veneranda velhice. Continuai com
a vossa luta e, por favor, cuidai bem da Mãe Terra. Acreditai em mim, e sou
sincero, de coração vos digo: Rezo por vós, rezo convosco e quero pedir a nosso
Pai Deus que vos acompanhe e abençoe, que vos cumule do seu amor e defenda no
caminho concedendo-vos, em abundância, aquela força que nos mantém de pé: esta força
é a esperança, a esperança que não decepciona. E peço-vos, por favor, que
rezeis por mim. E se algum de vós não pode rezar, com todo o respeito, peço-te
que me tenha em teus pensamentos e mande-me uma boa “onda”. Obrigado!
[1]JOÃO
XXIII, Carta enc. Mater et Magistra (15 de Maio de 1961),
3: AAS 53 (1961), 402.
[2]PAULO
VI, Carta enc. Popolorum progressio, 14.
[3]PONTIFÍCIO
CONSELHO «JUSTIÇA E PAZ», Compêndio da Doutrina Social da Igreja,
157.
[4]V
CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO E DO CARIBE (2007), Documento
de Aparecida, 66.
[5]JOÃO
PAULO II, Exort. ap. pós-sinodal Ecclesia in Africa (14 de
Setembro de 1995), 52: AAS 88 (1996), 32-33. Cf. IDEM, Carta
enc. Sollicitudo rei socialis (30 de Dezembro de 1987),
22: AAS 80 (1988), 539.
[6]JOÃO
PAULO II, Bula Incarnationis mysterium, 11.
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