quarta-feira, 30 de maio de 2012

Abrindo o Coração em defesa das Crianças

Um pacto social em defesa das crianças


Dom Murilo Krieger
Arcebispo de São Salvador (BA) e Primaz do Brasil
O depoimento de Xuxa no Fantástico de domingo passado foi analisado, ao longo da semana, sob os mais variados ângulos. Ela recebeu aplausos calorosos e críticas ferrenhas. Não pretendo jogar mais lenha nessa fogueira, que já ardeu o suficiente.
Destaco, tão somente, um aspecto positivo de sua decisão de abrir o coração e
partilhar publicamente a dor que sofreu na infância e adolescência por abusos de que foi vítima. Seu depoimento poderá dar coragem a outras vítimas, chamar a atenção dos pais para a redobrada atenção que devem ter em relação a seus filhos e acordar a sociedade para uma das piores violências que se pode cometer: a chamada violência “invisível”.
Anos atrás, alarmada com denúncias que lhe chegavam das voluntárias que iam de casa em casa, a direção da Pastoral da Criança fez um levantamento e constatou: a violência, também a sexual, contra crianças e adolescentes começa, na maioria das vezes, dentro da própria família, por pessoas que têm por missão garantir-lhes proteção. Tempos depois, foi a vez do Ministério da Saúde fazer uma pesquisa a respeito. Suas conclusões foram semelhantes às da Pastoral da Criança, mas com números concretos: dos 1.939 registros de violência contra crianças de até 9 anos, entre 2006 e 2007, 845 (44%) foram por violências sexuais. Entre os adolescentes e jovens (10-19 anos), esse tipo de ocorrência correspondeu a 1.335 (56%) dos 2.370 casos notificados. A residência foi o local em que houve 58% dos episódios de violência sexual contra crianças e adolescentes.
Os dados recentes são igualmente dolorosos: em 2011, a violência sexual tirou o 2º lugar na tipificação do crime, entre crianças menores de 10 anos. Elas somam 35% dos casos registrados, perdendo apenas para a negligência e o abandono (36%). “E pior: 64,5% das notificações aconteceram onde a criança... mora. Maior parte dos agressores? Os próprios pais ou outros familiares (38%). A força física e o espancamento são as formas mais comuns para violentar as crianças (22%)” (Sônia Racy, O Estado de S. Paulo, 22.05.12).
Ao levar o drama da “violência invisível” para a televisão, e em horário privilegiado, Xuxa está dando à sociedade a oportunidade de deixar de “bancar avestruz” (Aurélio: “Obstinar-se em não ver ou considerar o lado desagradável das coisas”). Afinal, como lembrou o Sr. Itamar Gonçalves, coordenador do projeto da “Childhood Brasil”, organização de combate à violência sexual, as denúncias “crescem a passos lentos. Sabemos que as denúncias são apenas a ponta do iceberg. Os casos são muito mais numerosos, e a responsabilização ainda é pequena”.
Hoje temos melhor conhecimento dos efeitos da violência sexual praticada contra crianças – por exemplo: o sentimento de culpa que passa a acompanhá-las, e por vezes ao longo de toda a sua vida, a vergonha que se torna sua companheira, os transtornos depressivos que começam a sentir, as alucinações, o baixo desempenho na escola e tarefas de casa, as alterações de memória, o comportamento agressivo e violento, as tentativas de suicídio etc. Na vida adulta, o abuso na infância e na adolescência pode-se traduzir em uso excessivo de álcool e drogas. Algumas pessoas vão passar a vida toda sem revelar o que vivenciaram e sofreram. “O mecanismo de defesa para muitas delas é fingir que o abuso não aconteceu. Ao dissociar o corpo do sentimento, porém, os jovens comprometem o próprio desenvolvimento” (Itamar Gonçalves).
Deve ter sido por causa da fragilidade interna das crianças, de sua dependência, de sua necessidade de proteção, das repercussões que as agressões têm em sua vida e, particularmente, pelo amor e carinho que lhes devotava (“Deixai as crianças virem a mim e não as impeçais, pois a pessoas assim é que pertence o Reino de Deus” – Lc 18,16), que nasceu do coração de Jesus uma de suas mais fortes afirmações: “Caso alguém escandalize um destes pequeninos que crêem em mim, melhor seria que lhe pendurassem ao pescoço uma pesada pedra de moinho e fosse precipitado nas profundezas do mar” (Mt 18,6).
É urgente um pacto social em defesa das crianças.

Nenhum comentário:

Postar um comentário