Um pacto social em defesa das crianças
Dom Murilo Krieger
Arcebispo de São Salvador (BA) e Primaz do Brasil
Arcebispo de São Salvador (BA) e Primaz do Brasil
O depoimento de Xuxa no Fantástico de
domingo passado foi analisado, ao longo da semana, sob os mais variados
ângulos. Ela recebeu aplausos calorosos e críticas ferrenhas. Não
pretendo jogar mais lenha nessa fogueira, que já ardeu o suficiente.
Destaco, tão somente, um aspecto
positivo de sua decisão de abrir o coração e
partilhar publicamente a
dor que sofreu na infância e adolescência por abusos de que foi vítima.
Seu depoimento poderá dar coragem a outras vítimas, chamar a atenção dos
pais para a redobrada atenção que devem ter em relação a seus filhos e
acordar a sociedade para uma das piores violências que se pode cometer: a
chamada violência “invisível”.
Anos atrás, alarmada com denúncias que
lhe chegavam das voluntárias que iam de casa em casa, a direção da
Pastoral da Criança fez um levantamento e constatou: a violência, também
a sexual, contra crianças e adolescentes começa, na maioria das vezes,
dentro da própria família, por pessoas que têm por missão garantir-lhes
proteção. Tempos depois, foi a vez do Ministério da Saúde fazer uma
pesquisa a respeito. Suas conclusões foram semelhantes às da Pastoral da
Criança, mas com números concretos: dos 1.939 registros de violência
contra crianças de até 9 anos, entre 2006 e 2007, 845 (44%) foram por
violências sexuais. Entre os adolescentes e jovens (10-19 anos), esse
tipo de ocorrência correspondeu a 1.335 (56%) dos 2.370 casos
notificados. A residência foi o local em que houve 58% dos episódios de
violência sexual contra crianças e adolescentes.
Os dados recentes são igualmente
dolorosos: em 2011, a violência sexual tirou o 2º lugar na tipificação
do crime, entre crianças menores de 10 anos. Elas somam 35% dos casos
registrados, perdendo apenas para a negligência e o abandono (36%). “E
pior: 64,5% das notificações aconteceram onde a criança... mora. Maior
parte dos agressores? Os próprios pais ou outros familiares (38%). A
força física e o espancamento são as formas mais comuns para violentar
as crianças (22%)” (Sônia Racy, O Estado de S. Paulo, 22.05.12).
Ao levar o drama da “violência
invisível” para a televisão, e em horário privilegiado, Xuxa está dando à
sociedade a oportunidade de deixar de “bancar avestruz” (Aurélio:
“Obstinar-se em não ver ou considerar o lado desagradável das coisas”).
Afinal, como lembrou o Sr. Itamar Gonçalves, coordenador do projeto da
“Childhood Brasil”, organização de combate à violência sexual, as
denúncias “crescem a passos lentos. Sabemos que as denúncias são apenas a
ponta do iceberg. Os casos são muito mais numerosos, e a
responsabilização ainda é pequena”.
Hoje temos melhor conhecimento dos
efeitos da violência sexual praticada contra crianças – por exemplo: o
sentimento de culpa que passa a acompanhá-las, e por vezes ao longo de
toda a sua vida, a vergonha que se torna sua companheira, os transtornos
depressivos que começam a sentir, as alucinações, o baixo desempenho na
escola e tarefas de casa, as alterações de memória, o comportamento
agressivo e violento, as tentativas de suicídio etc. Na vida adulta, o
abuso na infância e na adolescência pode-se traduzir em uso excessivo de
álcool e drogas. Algumas pessoas vão passar a vida toda sem revelar o
que vivenciaram e sofreram. “O mecanismo de defesa para muitas delas é
fingir que o abuso não aconteceu. Ao dissociar o corpo do sentimento,
porém, os jovens comprometem o próprio desenvolvimento” (Itamar
Gonçalves).
Deve ter sido por causa da fragilidade
interna das crianças, de sua dependência, de sua necessidade de
proteção, das repercussões que as agressões têm em sua vida e,
particularmente, pelo amor e carinho que lhes devotava (“Deixai as
crianças virem a mim e não as impeçais, pois a pessoas assim é que
pertence o Reino de Deus” – Lc 18,16), que nasceu do coração de Jesus
uma de suas mais fortes afirmações: “Caso alguém escandalize um destes
pequeninos que crêem em mim, melhor seria que lhe pendurassem ao pescoço
uma pesada pedra de moinho e fosse precipitado nas profundezas do mar”
(Mt 18,6).
É urgente um pacto social em defesa das crianças.
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