terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Jesus e os Salmos - Frei Carlos Mesters - Fundador do CEBI

Jesus e os Salmos [1]

A Oração dos Salmos na vida de Jesus
Frei Carlos Mesters, O. Carm.

Os primeiros cristãos, sobretudo Lucas e João, nos conservaram uma imagem de Jesus orante que vivia em contato permanente com o Pai. A respiração da vida de Jesus, o seu alimento diário, era fazer a vontade do Pai (Jo 5,19). Em vários momentos ele aparece rezando, sobretudo nos momentos decisivos de sua vida. No centro desta vida de oração estão os Salmos.

1. Contexto e ambiente da oração dos Salmos no tempo de Jesus
A escola de oração de Jesus

Durante o exílio na Babilônia e, sobretudo, depois, criou-se no povo judeu o costume de reunir a família para rezar, diariamente, nos mesmos momentos em que, lá no templo de Jerusalém, se costumava oferecer o sacrifício: de manhã, ao meio dia e na boca da noite. Foi também durante e, sobretudo, depois do exílio, que começou o lento surgimento da sinagoga, isto é, das reuniões semanais nos sábados.
Assim, aos poucos, foi nascendo todo um contexto de oração com um ritmo diário, semanal e anual. O ritmo diário se transmitia dentro da Casa, no ambiente da família. O ritmo semanal se desenvolvia na Sinagoga, no ambiente da comunidade. O ritmo anual, que nós chamamos de Ano Litúrgico, se irradiava a partir do templo de Jerusalém para a vida da nação, do povo.
Criava-se, assim, um ambiente familiar e comunitário impregnado pela leitura orante da Palavra de Deus, dentro do qual as pessoas aprendiam de memória os salmos e as orações, como hoje se aprendem de memória os cânticos. Havia preces e bênçãos para todos os momentos importantes da vida. Até hoje, se conservam aquelas orações. Nos benditos que cantavam e nas bênçãos que invocavam, lembravam os acontecimentos mais importantes do passado. Isto as ajudava a reforçar a própria identidade, a conhecer a história do povo e a não perder a memória. Era uma verdadeira catequese.
A escola de oração de Jesus era, antes de tudo, esta vida do dia-a-dia em casa na família e na comunidade. Foi lá que ele aprendeu a conviver, a rezar e a trabalhar. O povo rezava muito, todos os dias, de manhã, ao meio dia e à noite. “Desde criança”, Jesus aprendeu os salmos de memória. A mãe ou a avó os ensinava (cf. 2 Tim 1,5; 3,15).
Os salmos eram rezados não só com os lábios, mas com o corpo todo. A expressão corporal fazia parte da reza dos salmos. Por exemplo: procissão (Sl 68,24-25; 95,2), prostração (Sl 5,8; 95,6), inclinação e genuflexão (Sl 95,6), estender as mãos (Sl 63,5; 141,2), “orientação” na direção do Templo que ficava no Oriente (Sl 138,2), dança (Sl 149,3; 150,4), canto (Sl 147,1), grito (Sl 3,5; 142,2.6), colocar a cabeça entre os joelhos (1Rs 18,42), etc. A expressão corporal contribuía para criar e reforçar o ambiente de oração.
O tríplice ritmo da oração no tempo de Jesus
A oração diária era cultivada em Casa na família. Ela consistia em rezar três vezes por dia as 18 bênçãos (manhã, meio dia, noite) e duas vezes o Shemá (manhã e noite). A recitação destas preces era intercalada com salmos. Eis o esquema da oração que Jesus rezava todos os dias:

* As 18 bênçãos (de manhã, à tarde e à noite)
* O Shemá, composto de três benditos e três leituras (de manhã e à noite)
1. Um bendito ao Deus Criador que cria o povo
2. Um bendito ao Deus Revelador que se revela e elege o povo
3. Três leituras:
Dt 6,4-9: receber o Reino
Dt 11,13-21: receber a Lei de Deus
Nm 15,37-41: receber a Consagração
4. Um bendito ao Deus Salvador que liberta o povo
* Tanto as 18 bênçãos como o Shemá, tudo era o misturado com Salmos.

A oração semanal era cultivada no ambiente comunitário da sinagoga. No tratado Pirque Abbôt, Rabi Aqiba descreve este ambiente comunitário da seguinte maneira: “O Mundo repousa sobre três colunas: a Lei, o Culto e o Amor”. A Lei (torá) era a leitura da Sagrada Escritura. O Culto (abodáh) era a celebração, a oração dos Salmos. O Amor (hesed) era a preocupação em descobrir como ajudar as pessoas necessitadas da comunidade. Até hoje, é este o ambiente que se cria nas nossas comunidades. O povo reúne para ler e meditar a Bíblia, para rezar juntos e para ver como pode ajudar as pessoas necessitadas da comunidade.
A oração anual era cultivada através das romarias. A lei recomendava que, a cada ano, todos fossem ao templo de Jerusalém para “comparecer diante de Deus” nas três grandes festas do ano: Páscoa, Pentecostes e Tabernáculos (Ex 23,14-17; 2Crôn 8,13).
Eis um resumo do ambiente da oração dos salmos, dentro do qual Jesus nasceu, cresceu e se formou:

1. O ritmo diário em casa, na família
Em casa, o povo rezava três vezes ao dia: de manhã, ao meio dia e à noite, isto é, nos exatos três momentos em que, lá no Templo, se oferecia o sacrifício. Assim, a nação inteira se unia diante de Deus.

2. O ritmo semanal da vida comunitária na sinagoga
Nos Sábados, reuniam na sinagoga para ler a Bíblia, rezar e discutir a vida da comunidade. Havia um esquema fixo para as leituras da Lei de Moisés. A leitura dos profetas dependia da escolha do momento (Lc 4,17).

3. O ritmo anual da vida do povo ao redor do Templo
Era baseado no ano litúrgico com suas festas. Cada ano, faziam três romarias a Jerusalém para visitar o templo (Ex 23,14-17; 2 Crôn 8,13).
A função dos salmos na vida do povo no tempo de Jesus
Casa-Família-Dia, Sinagoga-Comunidade-Semana, Templo-Povo-Ano. Os salmos faziam parte deste ambiente de oração. Formavam o seu eixo. Destacamos aqui três aspectos da função que eles exerciam na prática orante do povo:

1) Como modelo ou amostra. Andar se aprende andando. Era recitando, repetindo e ruminando os salmos que o povo rezava e aprendia a rezar. Foi assim que Jesus os rezou ao longo de toda a sua vida.

2) Como muleta ou recurso em momentos de desolação. Quando o sofrimento criava um vazio de secura na pessoa e lhe faltavam palavras para rezar, então, nesses momentos, o que lhe restava era recorrer à memória e usar a muleta do salmo decorado para dirigir-se a Deus. Foi assim que Jesus rezou os salmos quando estava morrendo na cruz.

3) Como desafio ou provocação. A recitação constante dos salmos não podia levar a pessoa a uma rotina, mas devia levá-la a uma maior criatividade. O objetivo da recitação freqüente dos salmos era fazer com que cada um, cada uma, chegasse a elaborar o seu próprio salmo. Foi assim que Jesus rezou os salmos, pois, como veremos, ele chegou a fazer o seu próprio salmo e o ensinou aos discípulos.

A oração dos salmos na vida das pessoas ao redor de Jesus
Mesmo não sendo históricos no sentido estrito da palavra, os dois primeiros capítulos do evangelho de Lucas nos oferecem uma amostra de como era a piedade popular naquela época e de como esta piedade era marcada pela oração dos salmos. Estes capítulos comunicam um contexto de oração que transparece nas atitudes orantes de algumas pessoas que conviveram com Jesus ou que eram da mesma época:

Maria, a Mãe de Jesus.
O cântico de Maria (Lc 1,46-55) parece uma colcha de retalhos, retalhos quase todos tirados dos salmos. Ele mostra como os salmos estavam no coração da vida orante do povo no tempo de Jesus e das primeiras comunidades cristãs. A concordância da Bíblia de Jerusalém mostra claramente como este cântico está impregnado pelos salmos. Além disso, o cântico de Maria é uma prova de como a recitação freqüente dos salmos provocava nas pessoas a criatividade e as levava a fazer o seu próprio salmo.


Zacarias e Isabel.
O cântico de Zacarias (Lc 1,67-79) tem as mesmas características já observadas no cântico de Maria. Ele também é fruto da meditação dos salmos e da história do povo de Deus. O contexto da visita de Maria a Isabel (Lc 1,39-45) é um contexto orante em que duas mulheres, duas donas de casa, experimentam a presença de Deus numa das coisas mais comuns da vida humana: a visita que uma faz à outra para prestar-lhe um serviço. Maria aparece ajudando Isabel num parto de risco.

Simeão e Ana.
O mesmo se diga do velho Simeão (Lc 2,25-35) e da profetisa Ana (Lc 2,36-38). Os dois viviam no ambiente de oração, que se criou ao redor do Templo, e por isso tornaram-se capazes de reconhecer a presença de Deus numa criança recém nascida, levada para o templo por um casal pobre.
Jesus convivendo no ambiente de oração do seu povo
Nos evangelhos Jesus aparece convivendo e participando nesse contexto da vida orante do seu povo com seu tríplice ritmo de oração. Enumeramos aqui só alguns momentos de oração. Quem for pesquisar, encontrará outros espalhados pelos quatro evangelhos.

Ritmo diário e familiar
* Levanta bem cedo para rezar (Mc 1,35)
* Reza antes das refeições (Lc 9,16; 24,30).
* A pedido das mães ele dá a bênção às crianças (Mc 10,16).
Ritmo semanal e comunitário
* Tem o costume de participar da oração na sinagoga nos sábados (Mc 1,21Lc 4,16)
* Durante a reunião semanal, ele se levanta para fazer a leitura (Lc 4, 16)
* Nos sábados participa da reunião para transmitir o seu ensinamento ao povo presente (Mc 6,2).
Ritmo anual do templo
* Aos doze anos de idade, ele vai ao Templo, à Casa do Pai (Lc 2,46-50).
* Participa das romarias ao Templo de Jerusalém nas grandes festas (Jo 5,1).
* Celebra a Ceia Pascal com seus discípulos (Lc 22,7-14).
* Ao sair da Ceia para o Horto reza salmos com os discípulos (Mt 26,30).
Resumindo. Foi naquele contexto familiar e comunitário, impregnado pela oração dos salmos, e na convivência com pessoas como aquelas descritas por Lucas, que Jesus nasceu e se formou, que ele "crescia em sabedoria, graça e tamanho diante de Deus e dos homens" (Lc 2,52). O ritmo diário, semanal e anual era a sua escola, o seu sustento e o seu quadro de referências. Era o ambiente que o levava a participar das romarias em busca da casa do Pai (Lc 2,42), e em que aprendeu a passar as noites em oração (Lc 5,16; 6,12).
2. Jesus, usando os salmos, rezando a vida, ensinando a rezar
A maneira como Jesus usava e rezava os salmos

"Desde pequeno", Jesus aprendeu de memória os salmos (cf. 2Tm 3,15; 1,5) e os usava de várias maneiras, entre outras, para dirigir-se ao Pai, para transmitir sua mensagem ao povo e para refutar as críticas dos adversários.

Usava os Salmos para dirigir-se ao Pai
Além da reza diária dos salmos em casa na família e da sua recitação semanal na comunidade, Jesus aparece rezando os salmos, sobretudo nos momentos difíceis do sofrimento, no Horto e na Cruz. No Horto, ele desabafa “Minha alma está triste” (Mc 14,34). A frase lhe é fornecida pelo mesmo salmo que ele rezou na cruz ao entregar o Espírito (Sl 31,9-10). O mesmo sentimento de dor e de tristeza aparece em outro salmo (Sl 42,5-6). Na cruz, Jesus reza dois salmos: “Meu Deus! Meu Deus! Por que me abandonaste?” (Mc 15,34; Sl 22,1) e “Em tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23,46; Sl 31,6).

Além disso, os evangelhos recorrem aos salmos para descrever certas cenas que acontecem durante a paixão e morte de Jesus: “voltam atrás os que planejam o mal contra mim” (Jo 18,6; Sl 35,4); “dividiram minhas vestes e sobre a túnica lançaram a sorte” (Sl Mc 15,23; Sl 22,19); “na minha sede me deram fel de beber” (Mt 27,28; Sl 69,22); “aquele que comigo põe a mão no prato, esse me entregará” (Mt 26,23; Sl 41,10); “confiou em Deus, que o livre agora”(Mt 27,43; Sl 22,9); “nenhum osso lhe será quebrado” (Jo 19,36; Sl 34,21). Era uma maneira para sugerir aos leitores que Jesus, aquele que estava morrendo na Cruz, era de fato o messias que o povo estava esperando.

Usava os salmos para ensinar o povo
Aqui, há todo um campo a ser investigado. De acordo com a concordância da Bíblia de Jerusalém, vários ensinamentos de Jesus são evocações de frases de salmos. Por exemplo:
“Felizes os mansos, porque herdarão a terra” (Mt 5,4; Sl 37,11)
“Felizes os que choram porque serão consolados” (Mt 5,5; Sl 126,5)
“Felizes os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt 5,8; Sl 24,3-4).
O pai que vê em segredo, escutará a prece feita em segredo (Mt 6,4; Sl 139,2-3).
O abandono à providência divina (Mt 6,25-34; Sal 127)
A parábola da vinha (Mc 12,1; Sl 80,9-19).
“Eu sou o bom pastor” (Jo 10,11; Sl 23)

Assim, há muitas outras evocações de salmos espalhadas pelas frases e ensinamentos de Jesus. Algumas provêm do próprio Jesus, outras, muito provavelmente, das comunidades que usavam as frases conhecidas dos salmos para transmitir os ensinamentos de Jesus.
Usava os salmos para refutar e criticar os adversários
Nas discussões com os fariseus e escribas, várias vezes Jesus responde com frases tiradas do livro dos Salmos, pois eram as mais conhecidas de todos e as mais usadas.

“Da boca dos pequeninos e das criancinhas preparaste um louvor para ti” (Mt 21,16; Sl 8,3 LXX).
“A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular” (Mt 21,42; Sl 118,23).
“O Senhor disse ao meu Senhor: senta-te à minha direita” (Mt 22,44; Sl 110,1).
“Vereis o Filho do Homem sentado à direita do Poderoso” (Mc 14,62; Sl 110,1)
Jesus, rezando a vida

A maneira de Jesus rezar e usar os salmos revela uma pessoa orante em profunda união com Deus. Jesus rezava muito. Passava noites em oração (Lc 6,12) para estar com o Pai e conhecer a sua vontade (Mt 26,39). Além dos momentos que já vimos, os evangelhos, sobretudo o de Lucas, nos conservaram outros momentos desta vida orante de Jesus.

Nestes outros momentos Jesus aparece rezando, mas os salmos quase não aparecem nestas preces. Por que? É que os salmos são como o pavio da vela, que não se vê por causa da cera que o esconde aos nossos olhos. As orações e preces são como a cera ao redor do pavio. Mas é o pavio que faz com que as preces e benditos possam iluminar a mente e esquentar o coração. As orações e preces são como as numerosas folhas verdes que escondem os galhos da árvore. Mas são os galhos invisíveis que geram as folhas. Os salmos são como galhos. Quando bem rezados geram as folhas das preces e das orações espontâneas. Eis só alguns destes outros momentos, em que Jesus aparece rezando:

* Na hora de ser batizado e de assumir a missão, ele reza (Lc 3,21).
* Na hora de iniciar a missão, passa quarenta dias no deserto (Lc 4,1-2).
* Na tentação, ele enfrenta o diabo com textos da Escritura (Lc 4,3-12).
* Na hora de escolher os doze Apóstolos, passa a noite em oração (Lc 6,12).
* Na hora de fazer levantamento da realidade e falar da sua paixão (Lc 9,18).
* Na alegria de ver Evangelho revelado aos pequenos (Lc 10,21).
* Na ressurreição de Lázaro: “Pai eu sei que sempre me ouves!” (Jo 11,41-42)
* Procura a solidão do deserto para rezar (Mc 1,35; Lc 5,16; 9,18).
* Rezando, desperta vontade de rezar nos apóstolos (Lc 11,1).
* Na crise sobe o Monte da transfiguração para rezar (Lc 9,28).
* Na hora da despedida reza a oração sacerdotal (Jo 17,1-26).
* Na angústia da agonia pede aos três amigos para rezar com ele (Mt 26,38).
* Na hora de ser pregado na cruz, pede perdão pelos carrascos (Lc 23,34).
* Jesus morre soltando o grito, a oração dos pobres (Mc 15,37).

Esta lista mostra como Jesus aparece rezando em quase todos os momentos importantes e difíceis da sua vida: na crise e na tentação, na escolha dos apóstolos, na decisão de ir para Jerusalém, na agonia do Horto, na hora de morrer na cruz. Ele vivia em contato com o Pai. Sua vida era uma oração permanente: "Eu a cada momento faço o que pai me mostra para fazer!" (Jo 5,19.30). A ele se aplica o que diz o Salmo: "Eu sou oração!" (Sl 109,4).

Jesus, ensinando a rezar
O jeito de rezar de Jesus era contagiante e provocava nos outros o desejo de aprender a rezar. Certo dia, assim informa o evangelho de Lucas, Jesus estava rezando. Era durante a subida para Jerusalém, onde seria preso e morto. Os apóstolos chegaram perto e pediram para ele ensinar-lhes a rezar como João Batista também tinha ensinado a seus discípulos (Lc 11,1). A resposta de Jesus aos discípulos foi o Pai-Nosso. Como bom judeu ele chegou a fazer o seu próprio salmo e o ensinou aos apóstolos.

A recitação dos salmos tinha uma dimensão mística e criativa. A sua reza era um momento não só para recitar devotamente as orações que outros tinham feito, mas também para cada um, cada uma, vivenciar a sua própria união com Deus. Naquele tempo, o ideal era este: cada pessoa devia aprender a rezar os salmos de tal maneira que por eles fosse despertada a formular seu próprio salmo. Jesus aprendeu a lição dos salmos. Chegou a fazer um salmo e o transmitiu para nós. É o Pai-Nosso.

O texto do Pai-Nosso, conservado no evangelho de Lucas (Lc 11,2-4), é mais curto que o texto conservado em Mateus (Mt 6,9-13). O texto de Mateus é um resumo orante em forma de sete preces de tudo que Jesus ensinou ao povo.
Além deste exemplo bem concreto do Pai-Nosso, Jesus deu vários outros conselhos de como rezar que são como que o fruto da sua própria experiência de oração, alimentada pela recitação dos salmos. Eis alguns destes conselhos:

* Na oração se deve pedir as coisas a Deus em nome de Jesus (Jo 15,16; 16,23-24).
* Deve-se pedir as coisas com muita confiança, sem esmorecer (Lc 11,5-13; Mc 7,7-11)
* Na oração não convém usar muitas palavras nem confiar no muito palavreado (Mt 6,7-18).
* Não rezar para ser visto pelos outros, mas entrar no quarto, fechar a porta e rezar no segredo, pois o Pai nos vê (Mt 6,5-6).

Os evangelhos conservaram também algumas orações que Jesus rezou e algumas das intenções pelas quais rezou:

* Rezou por Pedro, para que não desfalecesse na fé (Lc 22,32).
* Passou a noite em oração para saber a quem escolher (Lc 6,12).
* Recomenda rezar na hora da tentação (Lc 22,40).
* Diz que certos males só saem na base de muita oração (Mc 9,29).
* Manda pedir que Deus envie operários na sua messe (Lc 10,2).
* O testamento de Jesus é uma prece pela unidade (Jo 17,1-26).
* Diz que o Espírito Santo só se obtém através da oração (Lc 11,13).
* Pediu perdão ao Pai pelos seus carrascos (Lc 23,34).

3. As Comunidades: a continuação de Jesus orante

O livro dos Atos é o segundo volume da obra de Lucas. No primeiro, ele fala de Jesus. No segundo, fala das comunidades como sendo a continuidade de Jesus. Existe um paralelo entre o que Jesus faz no Evangelho e o que as comunidades fazem em Atos. Através da ação do Espírito Santo, elas são a presença continuada de Jesus diante de Deus e diante dos homens. De modo particular, isto vale para a oração. Assim como Lucas acentua, mais que os outros evangelistas, a oração em Jesus. Da mesma maneira impressiona a freqüência com que ele, em Atos, menciona a oração na vida das comunidades.

Como no evangelho, também em Atos, a cera das preces esconde o pavio dos salmos. Mas a quantidade impressionante de momentos de oração em Atos revela a força de irradiação dos salmos na vida das comunidades. Segue aqui uma lista (quase monótona) dos textos de Atos que, de uma ou de outra maneira, mencionam a oração:

At 1,14: A comunidade persevera na oração com Maria a mãe de Jesus.
At 1,24: A comunidade ora para escolher o substituto de Judas.
At 2,25-35: Pedro cita salmos durante a pregação.
At 2,42: Os primeiros cristãos são assíduos na oração.
At 2,46: São assíduos também em freqüentar o Templo.
At 2,47: Eles louvam a Deus.
At 3,1: Pedro e João sobem ao Templo para a oração da hora nona.
At 3,8: O aleijado curado louva a Deus.
At 4,23-31: A comunidade reza na perseguição.
At 5,12: Os primeiros cristãos permanecem no pórtico de Salomão.
At 6,4: Os Apóstolos se dedicam à oração e à palavra.
At 6,6: Eles rezam antes de impor as mãos aos diáconos.
At 7,59: Estevão reza: "Senhor, recebe o meu espírito!"
At 7,60: Reza ainda: "Senhor, não lhes leve em conta esse crime!"
At 8,15: Pedro e João oram para os convertidos receberem o Espírito.
At 8,22: Ao pecador se diz: arrepende-te e ora, para obter o perdão.
At 8,24: Simão Mago diz: "Reze por mim a Deus!"
At 9,11: Saulo está orando.
At 9,10ss: Diálogo de Ananias com Deus.
At 9,40: Pedro reza pela cura de Dorcas.
At 10,2: Cornélio orava a Deus constantemente.
At 10,4: As orações de Cornélio sobem ao céu e são ouvidas.
At 10,9: Pedro reza na sexta hora no terraço.
At 10,13s: Diálogo de Pedro com Deus.
At 10,30: Cornélio faz oração na hora nona.
At 10,31: Cornélio escuta o anjo dizer: "Tua oração foi ouvida".
At 11,5: Pedro informa ao povo de Jerusalém: "Eu estava em oração!"
At 12,5: A comunidade ora quando Pedro é preso.
At 12,12: Na casa de Maria, muitos estão reunidos em oração.
At 13,2: O envio dos missionários acontece durante uma celebração.
At 13,3: A comunidade reza no envio de Paulo e Barnabé em missão.
At 13,48: Os pagãos se alegram e glorificam a Palavra de Deus.
At 14,23: Os missionários oram para designar os coordenadores.
At 16,13: Em Filipos, junto do rio, há um lugar de oração.
At 16,16: Paulo e Silas iam indo para a oração.
At 16,25: De noite, Paulo e Silas cantam e rezam na prisão.
At 18,9: Paulo tem uma visão do Senhor durante a noite.
At 18,18: Paulo raspou a cabeça para cumprir uma promessa.
At 19,17: O Nome de Jesus é engrandecido por todos.
At 19,18: Muitos confessam os seus pecados.
At 20,7: Eles estão reunidos para a fração do pão (Eucaristia).
At 20,32: Paulo recomenda a Deus os coordenadores das comunidades.
At 20,36: Paulo reza de joelhos com os coordenadores das comunidades.
At 21,5: Colocam-se de joelhos na praia para rezar.
At 21,14: Diante do inevitável, o povo diz: Seja feita a vontade de Deus!
At 21,20: Glorificam a Deus pelo que Paulo realizou.
At 21,26: Paulo vai ao templo cumprir uma promessa.
At 22,7ss: Diálogo de Paulo com Jesus.
At 22,17: Paulo orou no Templo e teve uma visão.
At 22,18ss: Diálogo de Paulo com Deus.
At 23,11: Preso em Jerusalém, Paulo tem uma visão de Jesus.
At 27,23ss: Paulo tem uma visão de Jesus durante a tempestade no mar.
At 27,35: Paulo abençoa o pão antes de aportar em Malta.
At 28,8: Paulo reza sobre o pai de Públio que está doente.
At 28,15: Paulo dá graças a Deus ao encontrar os irmãos em Putéoli.

Nestas orações das comunidades, observa-se o mesmo que observamos na oração de Jesus. Como Jesus, os primeiros cristãos continuam a tradição do povo e mantêm o que aprenderam “desde pequeno”: rezam em casa na família, em comunidade na sinagoga e junto com o povo no Templo.
Como Jesus, criam um novo jeito de rezar com um novo conteúdo. Além da participação na liturgia tradicional, eles têm seus próprios momentos de oração com que acompanham os atos importantes da vida em comunidade: rezam na hora do batismo, no momento de receber o Espírito Santo, na imposição das mãos, na transmissão dos ministérios, na escolha dos novos ministros, no envio dos missionários. Como em Jesus, a sua oração intensifica-se nos momentos difíceis e críticos da caminhada: rezam na perseguição, na despedida, na doença, na hora da morte, na conversão de uma pessoa.

A raiz desta novidade brota da nova experiência de Deus que Jesus nos trouxe e da consciência clara que elas têm da presença de Deus no meio delas. Os cristãos formavam comunidades orantes, dedicadas à Palavra e à Oração (At 6,4).

4. Uma chave para os Salmos: rezar como Jesus rezou

Para os judeus, o importante era "rezar como Davi rezou". Para nós cristãos, o importante é "rezar como Jesus rezou" e, assim, criar em nós os mesmos sentimentos que animaram a Jesus durante toda a sua vida (Fl 2,5).

A escola de oração de Jesus era a vida em casa com a mãe e na sinagoga com a comunidade. Mas era também e, sobretudo, a sua vida de intimidade com Deus, seu Pai. Aqui atingimos o coração, a respiração da vida de Jesus, onde ninguém penetra. A gente só o adivinha por aproximação a partir do que os evangelhos informam.

A intimidade com o Pai dava a ele um critério novo para ler e rezar os salmos. Ele buscava o sentido na fonte. Não ia da letra até à raiz, mas ia da raiz até à letra. A partir da sua experiência de Deus, os salmos adquiriam para ele um sentido novo, mais pleno. Por isso, nós cristãos, quando rezamos os salmos, costumamos terminá-los com a invocação da Santíssima Trindade. É a maneira de rezar os salmos como Jesus os rezava, a partir da mesma experiência de Deus, que ele nos revelou.

No tempo de Jesus, o povo judeu tinha de Deus a idéia de alguém distante, cujo nome não podia ser pronunciado. Em vez de Javé diziam Adonai, Senhor. O relacionamento com Deus se fazia, sobretudo através das normas da lei, ensinadas pelos escribas e fariseus. A novidade que Jesus nos trouxe é que, através das suas palavras e ações, nascidas da sua experiência de filho, o mesmo Deus que parecia tão distante e severo adquiriu para nós os traços de um Pai bondoso de grande ternura, sempre presente, pronto para acolher e libertar! Esta Boa Notícia de Deus, comunicada por Jesus, era a nova chave para reler todo o Antigo Testamento e rezar os salmos com um novo olhar.
Jesus é uma nova chave de leitura para os Salmos. Não basta o estudo para que os salmos liberem o seu sentido. É preciso ter nos olhos e no coração esta consciência e a liberdade de filhos e filhas de Deus que Jesus nos comunica. Do contrário, os salmos continuam cobertos por um véu que impede a descoberta plena do seu sentido. "É só pela conversão ao Senhor que o véu cai. Pois o Senhor é Espírito e onde há o Espírito, aí há liberdade" (2Cor 3,17).

O texto do salmo é como uma lâmpada. O estudo do texto limpa a lâmpada e tira a poeira de séculos que grudou do lado de fora e abafa o brilho. A experiência de Deus e da vida, vivida e partilhada na comunidade, gera a força que acende a lâmpada do salmo pelo lado de dentro e produz o brilho.
Dizia Cassiano (século V): "Instruídos por aquilo que nós mesmos sentimos, já não percebemos o salmo como algo que só ouvimos, mas sim como algo que experimentamos e tocamos com nossas mãos; não como uma história estranha e inaudita, mas como algo que damos à luz desde o mais profundo do nosso coração, como se fossem sentimentos que formam parte do nosso próprio ser. Repitamo-lo: não é a leitura que nos faz penetrar no sentido das palavras, mas sim a própria experiência adquirida anteriormente na vida de cada dia" (Collationes X,11). Milton Nascimento diz a mesma coisa com outras palavras: “Certas canções caem tão bem em mim que perguntar carece por que não fui eu que fiz!”

Frei Carlos Mesters, carmelita, mestre em Exegese Bíblica e Doutor em Teologia Bíblica, co-fundador e assessor do CEBI – Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, e-mail: cmesters@ocarm.org

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